Mãezinha
do céu
Caminhávamos
pela calçada da Generalíssimo, no adiantado daquela noite de outubro, Regina e
eu. Regina de saia plissada, sapato boneca, um fichário, com desenhos coloridos
e muitos chaveiros pendurados, colado ao flanco direito do corpo, na mais
perfeita tradução de aluna do Paes de Carvalho. Eu, com a minha velha bata
azul-clarinha, da Escola Técnica, um inexpressivo bloquinho de papel almaço e
uma Bic escrita grossa, no bolso detrás da calça. Estávamos de emendada. Direto
do colégio pra’li. Jovens e militantes de grupos católicos, encerrávamos
naquela hora, a nossa participação no programa que se realizava na concha
acústica do CAN, e acelerávamos em direção à São Jerônimo pra pegar o Cristo.
Um vento! Um vento forte assobiava ascendente e se ajeitava compacto pelo túnel
de mangueiras da avenida, revolvendo minha fé.
Estalidos
e quebradeiras nas alturas. Mas a vida seguia decidida, ‘severina’, naquela
pisada que nos levava até à parada do ônibus. Comentávamos sobre as
apresentações, comparávamos a esquete do nosso grupo de jovens com a dos
outros, confirmávamos encontros para os outros dias da quadra nazarena.
Repetíamos precisamente a prece criada pelos meninos moderninhos da PJ: “Ave tu
que és mãe/cheia de dor/ por gerar a humanidade/ em forma de rios não
navegáveis/O Senhor cuida de ti/e tu te encontras no meio do mundo/chorando
pelos filhos desaparecidos/ou fortemente armados/Bendita és entre as mulheres
tuas irmãs/ e bendito é o leite de teu seio (que faz o milagre de alimentar o
bem futuro)/ó, mãe da criação/o teu poder torna possível o meu/te peço que me
resgates/do fundo de um poço escuro/para que eu não me sinta/tão só/embora eu
não seja digno/de ser levado por tuas mãos/sei que assim tu queres/amém”.
A
primavera já havia chegado ali pelo meio de setembro. As mangas já começavam a
aparecer. Eu sabia que os cachos estavam
carregados, mas não as maldava maduras, de cair assim, numa lufada mais afoita
de ar. Proseava e caminhava deslumbrado com aquela noite especial. Encontrava
com gente amiga, trombava num romeiro desatento, mirava os brinquedos estirados
no chão pelos camelôs sazonais. Percebia a rua iluminar-se pelos loiros cabelos
da Regina e não tinha medos, naquela noite.
Foi
num segundo. Um instante mínimo, um nadinha de tempo, um momento quase que
inexistente. Um barulho e uma luz (pra falar a verdade, não houve luz nenhuma. O
brilho ficou por conta do sobressalto. Pra mim, aquilo foi um trovão. Um relampejo,
um faiscado chocante).
O
vento, tanto que deu na copa das árvores, que a manga despregou-se do cacho,
atravessou o robusto trançado de galhos e espatifou-se aos meus pés. Caiu, como
se fosse um impreciso meteorito, a coisa de milímetros do meu cocuruto. Com uma
velocidade estonteante (por isso a luz) e uma força de afundar o chão (daí o
barulho espetacular).
Fiquei
estático, completamente paralisado. Demorei um tempinho pra tornar. Quando dei
por mim, só tive reação para dizer “Regina da minha alma, o que foi isso?”. A
Regina (que aliás se chama Regina Coeli, um nome que numa oportuna tradução do
latim quer dizer ‘rainha do céu’), reduziu-se à uma perplexidade igual, ou até
maior que a minha, e o máximo que conseguiu foi apontar para a manga
esbandalhada no chão, com as alvas mãos trêmulas e incertas.
Passado
aquele momento de extrema tensão, nos aviamos ligeiros para casa. Comigo foi a
certeza de que nossa mãezinha do céu nunca nos deixa só. Sempre nos encontra,
nos resgata, nos livra de todos os maus, todos os perigos (até de uma paraensíssima
manga em errante queda livre).
Nenhum comentário:
Postar um comentário