Pêta cajá
Os
dias que passei de licença paternidade, foi pegando sol com ela. Descia a rua
até lá no fim, depois voltava abeirando a calçada, tenteando os fios da luz boa
da manhã. Minha pequena precisava daquela energia, daquela sustância de
vitamina que os feixes luminosos das horas primeiras do dia traziam. Aqueles
momentos de reconhecimento do mundo, as primeiras lutas para dominar os espaços
e os tempos melindrosos, Amaranta tirou de letra. Deu de dez a zero naquela cor
descolorada, indelicada e pra frente que a envolveu ao nascer. Depois dos cinco
dias contados garantidos pela lei, meus braços já abraçavam meu bebê coradinho,
rosadinho, de olhos graúdos e boca desenhada em coraçãozinho. Dali em diante o
sol seria nosso amigo estimado: companhia bem vinda nas alvoradas, parceiro
dileto nos arrebóis.
Quando
Amaranta nasceu, eu tinha um violão que me acompanhava há anos, desde os tempos
em que eu morava em Rondônia. Rolava um carinho muito grande por ele. Tínhamos
uma história. Mas estava um tanto estiolado, pirentinho, descascando, com uma
rachadura que fremia o som de forma descompensada, inconveniente.
A
chegada de minha filhinha foi uma renovação. Para mim, representou a recriação
da vida, a restauração da esperança. A menina trazia em si a força da mulher, a
essência feminina, sábia e corajosa (nos primeiros dias, só passeando no
colinho do pai, só absorvendo luz, não derrubou a névoa da palidez? Pois é.
Veio disposta, imediatamente racional, naturalmente íntima das cintilâncias).
Amarantinha nasceu me avisando da necessidade que temos das claridades, das
harmonias...
No
outro dia, cheguei em casa com um Di Giorgio zerado. Minha bebê ia ganhar uma
música feita num violão novinho da silva. Tinha um bercinho, mas não se dava.
Gostava mesmo era da rede. Chegava do nosso passeio matinal, a acomodava bem
acomodadinha, embalava um embalo calminho. Pegava o violão e cantarolava: “Cantiga
de ninar, filhinha/Pêta pêta/Pêta cajá/Pêta caju”. Era bem branquinha, trazia o
gene da mãe na cor da pele, mas eu a chamava de pêta, de preta, de pretinha do
pai, porque havíamos nos bronzeado ao sol da manhã. Ela unia as mãozinhas em
torno do rosto, fazia uma carinha de satisfação, se entregava à delícia do
embalo na rede, ao dedilhado do meu violão novisco e adormecia. Foi assim, com
a música que começamos a nos entender. A nos conhecer, e a nos aninhar nos
embalos da vida.
Hoje,
Amaranta no encanto dos seus dezesseis anos completados na quinta-feira, praticamente
comanda o meu gosto musical. Nos últimos anos, o que tenho conhecido de
novidade vem das indicações de Amaranta. E vou na onda. Já tietei com ela a
Tulipa Ruiz, fiquei espremido numa primeira fila ensandecida no show do Cícero,
espiei meio de banda o canto diferente do Wado e, é só anunciarem que Camila
Honda vai cantar, que Felipe Cordeiro tá por aqui fazendo uma apresentação, ou
que a banda Zeromou vai lançar um EP, que lá vou eu, o pai me aprontando para
acompanhar minha filha. Faço meu papel de tutor, de responsável, na companhia,
mas também me divirto, ora, ora, porque os artistas que ela aprecia são, ó,
preciosos mesmo. Também me dou com o som deles.
Fez
dezesseis primaveras, minha Amaranta, essa semana. Já é uma mocinha decidida.
Decidiu fazer teatro. No palco representa. Na vida, no entanto não se ausenta
um segundo de si. Tem uma personalidade indivisa, tenaz. Obstinada, busca
sempre, como nos primeiros cinco dias de vida, a claridade, as harmonias. E eu,
aprecio, me surpreendo, tenteio, me certifico do bom disso tudo e ganho dias
pra lá de felizes ao lado de minha Pêta cajá, Pêta caju.
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