Adões e Evas
Achei
no livro do Ruy Castro Ela é carioca,
uma frase genial do cronista Rubem Braga. Ele, para dar uma impressão do
ofício, diz que “crônica é viver em voz alta”. Uma opinião reveladora, uma
definição, por certo, para este jeito bem particular de escrever (e, segundo o
grande cronista, particular mesmo, individual, pessoal).
Foi
bom ter encontrado num dos maiores escritores do Brasil, amparo para aquilo que
faço (ou que pelo menos, usando de todo o meu charme, tento fazer). A bem da
verdade, fazer crônica é expor-se, é desnudar-se. É desvelar nos outros,
virtudes, defeitos nossos. É sangrar vapores dispersos e contaminar com a nossa
cepa, a vida de tantos. É denunciar-se inquieto. É revelar-se amante, amado. É
descobrir-se atraído, fugitivo. É inquietar-se traído. É conformar-se
esquecido. Fazer crônica é estar na pele alheia/minha e manifestar-se desejoso
de ganhar um candeeiro, como aconteceu dia desses aqui.
(‘Essa
vida em voz alta’, bem sei, ecoa de várias formas. E isso tem um preço. Tem os
sabores e os dissabores. A vida tem seus defeitos de fábrica).
Daquela
crônica que escrevi sobre o desejo de ter um candeeiro, tive várias respostas.
A primeira foi logo no dia seguinte, no trabalho. Quando fui pegar o turno, o
meu companheiro Roque Amorim me cortou e arou dizendo que naquela manhã a sua
esposa estava indo ao Ver-o-Peso com a missão única de trazer o meu candeeiro.
Bastava só que eu informasse o estilo e o empório onde encontrá-lo. Caramba!
Fiquei sem jeito. Quis explicar que aquele, na crônica não era eu. Que era um
personagem inventado, criado ao sabor da inspiração. Mas como convencê-lo disso
se eu estava ali no final do texto, me delatando?
Depois, abri uns e-mails e recebi do poeta Cláudio
Cardoso a informação de que ele havia comprado dois candeeiros para uma
performance que estava fazendo e que após as apresentações, um deles seria meu.
E de grátis, me adiantou o poema
chave do espetáculo, que tenho o prazer de reproduzir aqui: Quanto tempo tem o tempo/Numa fração de segundo/Tempo que passa no
tempo/Capaz de mudar o mundo/Foi-se o tempo que ia a vida/Se arrastando a cada
momento/Quando se tinha tempo para tudo/Sem correr e sem tormento/Quando vejo
em meu filho/O tempo que já passou/Como filho que também fui/E de meu pai, o
que ficou?/Pois o tempo é juiz/E implacável justiceiro/De nós não poupa nada/É
chama de candeeiro.
Surpresa de igual forma
agradável foi ter a garantia de um lampião vinda das mãos do querido clown João
Guilherme e encontrar, mais tarde, no site www.amapabusca.com.br o meu querido
amigo Orivaldo Fonseca que escreveu lá de Macapá um artigo com o título O candeeiro do Sodré. O texto do
Orivaldo faz exatamente uma reflexão sobre o caráter textual da crônica. Mergulha
nos subscritos e infiltra-se nos interstícios deste gênero literário tão
atraente. Lá pelas tantas o artigo ganha uma tez urbana, memorialista,
romântica e a seguir um perfil crítico, indignado. E neste momento Orivaldo
mostra o quanto domina o gênero que imortalizou Rubem Braga. Mas como bom
cronista que é, Orivaldo acaba negando-se como tal. Ou seja, na crônica, assim
como na tortura, “toda carne se trai”. É o preço que pagamos por criarmos Adões
e Evas de nossas próprias costelas.
Fazer crônica é enveredar-se
pelas sutilezas da alma e impor-se sereno ante as vilanias do mundo. É fazer da
palavra uma mensagem única que vem, ora veja, do coração. Então, se o ‘pulso
ainda pulsa’, que venha o candeeiro e que Deus me conceda, o quanto lhe
aprouver, viver em voz alta. Pois que o silêncio me fere de morte
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