sexta-feira, 20 de setembro de 2024

crônica da semana - carreira profissional

 Carreira profissional (pernas pra que te quero)

Desci a escada de madeira com corrimão roliço lustrado numa resina preta, com mais de mil. Aos tropeços e escorregões dei no clarão da rua. Era tarde, como se apresentam todas as recordações que tenho daquela época. Sempre era uma tarde mormacenta e de luz intensa. Dobrei no rés da calçada e embiquei no rumo da Presidente Vargas. E a pequena atrás de mim, me cuspindo, lançando tapas ao vento em tempo de me pegar. A banda da minha chinela saltou para o esquecimento da rua e logo além eu me desfiz da outra. Um lado, só me fez cachingar e perder a velocidade. Ensandecida, ela se aproveitou do meu atraso e se aproximou de mim a um triz. Descalço, recuperei e voei. Deixei a freguesa pra trás, atravessei a Assis de Vasconcelos sem perceber mais a brasa ardendo atrás de mim. O Lomas, que àquela época já cobria boa parte do território de Belém, dobrou a rua em manobra ousada, inclinando o carro e levando os passageiros ao desespero. O motora, na caté, pegou a reta. Após estabilizado no trajeto, parou bem adiante do ponto; acelerando, querendo partir de novo, o motora fez a presença, e ao ver meu sinal com o polegar de carona, abriu a porta da frente e me deixou entrar. Ofegante, descalço, meu bloco de cartões na mão bem apertadinhos na liga, pra não perder nenhum, relaxei e aliviado considerei que, se não sou rapaz, seria talhado numas boas e raivosas giletadas.

Tudo começou coisa de uma semana atrás, quando desenvolvia minha carreira de cobrador das vendas de mamãe.

Tinha lá meus 14, 15 anos. Experimentávamos uma fase boa na marretagem. Mamãe havia apostado no Crediário Santa Luzia. Fez uma associação com um cearense que vendia de porta em porta. Era um personagem comum naqueles tempos e que no vulgo a gente conhecia como ‘prestação’. O homem era fera. Mamãe fazia os investimentos e ele saía todo dia parece um amarinho ambulante. Severino levava tudo no muque. Rede, roupas, panelas, bregueçada, doces, perfumes. Mina de coisas. E vendia muito bem. Tirava o final de semana para as cobranças. Cabra bom. O negócio ia de vento em popa. Mas o galego, como também conhecíamos este tipo de vendedor, tinha um problema grave. Entornava uma cana di’cunforça. Não poucas vezes chegava pra prestar contas chirrado. Chamando Jesus de Genésio. Mamãe relevava. O homem dava lucro pra casa. Mas aí, quando as contas começaram a não bater. Quando o dinheiro todo amassadinho que ele trazia para fechar o dia, começou a ficar pelo caminho, não deu mais. Um dia que ele apareceu sóbrio. O saldo foi demonstrado, dividido e a sociedade desfeita. Sobrou pra mim, continuar o negócio.

Talento para a venda e estrutura física para sair todos os dias carregando aquela diversidade de produtos, eu não tinha. Reduzimos a pegada. Mamãe continuaria a venda, mas restrita aos perfumes, coisinhas e encomendas. E eu faria as cobranças que nos couberam na divisão com Severino e as novas que surgissem com mamãe. Foi aí que de dei com a pequena.

Todo sábado eu passava na casa dela. A mãe me recebia. Era crente. Fala mansa. Passa pra semana. A prestação era tão baratinha. Passei umas quatro semanas só cheirando na vara do batista. Até que um dia ela pagou uma única parcela do atrasado. E com dinheiro grande. Não tinha troco. Embolsei e disse que na volta acertaria.

Ocorre que tinha um festival de sorvete na Escola Salesiana. Entretido, esqueci do acertado. A pequena chegou, a mãe disse que eu tinha sumido com o dinheiro. Pois ela não foi bater em casa. Anarquizou com mamãe.

No dia seguinte, piriricas com o ocorrido, fui lá no local onde batalhava. Entrei sem me anunciar, joguei o troco no colo dela e devo ter recitado um poema que ela não gostou. Catou na estante a gilete. Foi aí que desci a escada do Xendengo com mais de mil e me superei em uma salvadora carreira profissional. De cobrador.

 

Um comentário:

  1. O universo não te abandona, sabia q querias muito mais. Eita q lembrastes coisas de nossa adolescência q meninas diretas não falavam "xendego", e háaa o nosso Festival de sorvete" lembrei nosso amigo Dino coordenando junto com outros o evento. Obrigada Sodré.

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