Carreira profissional (pernas pra que te quero)
Desci
a escada de madeira com corrimão roliço lustrado numa resina preta, com mais de
mil. Aos tropeços e escorregões dei no clarão da rua. Era tarde, como se
apresentam todas as recordações que tenho daquela época. Sempre era uma tarde
mormacenta e de luz intensa. Dobrei no rés da calçada e embiquei no rumo da
Presidente Vargas. E a pequena atrás de mim, me cuspindo, lançando tapas ao
vento em tempo de me pegar. A banda da minha chinela saltou para o esquecimento
da rua e logo além eu me desfiz da outra. Um lado, só me fez cachingar e perder
a velocidade. Ensandecida, ela se aproveitou do meu atraso e se aproximou de
mim a um triz. Descalço, recuperei e voei. Deixei a freguesa pra trás,
atravessei a Assis de Vasconcelos sem perceber mais a brasa ardendo atrás de
mim. O Lomas, que àquela época já cobria boa parte do território de Belém,
dobrou a rua em manobra ousada, inclinando o carro e levando os passageiros ao
desespero. O motora, na caté, pegou a reta. Após estabilizado no trajeto, parou
bem adiante do ponto; acelerando, querendo partir de novo, o motora fez a presença,
e ao ver meu sinal com o polegar de carona, abriu a porta da frente e me deixou
entrar. Ofegante, descalço, meu bloco de cartões na mão bem apertadinhos na
liga, pra não perder nenhum, relaxei e aliviado considerei que, se não sou
rapaz, seria talhado numas boas e raivosas giletadas.
Tudo
começou coisa de uma semana atrás, quando desenvolvia minha carreira de
cobrador das vendas de mamãe.
Tinha
lá meus 14, 15 anos. Experimentávamos uma fase boa na marretagem. Mamãe havia
apostado no Crediário Santa Luzia. Fez uma associação com um cearense que
vendia de porta em porta. Era um personagem comum naqueles tempos e que no
vulgo a gente conhecia como ‘prestação’. O homem era fera. Mamãe fazia os
investimentos e ele saía todo dia parece um amarinho ambulante. Severino levava
tudo no muque. Rede, roupas, panelas, bregueçada, doces, perfumes. Mina de
coisas. E vendia muito bem. Tirava o final de semana para as cobranças. Cabra
bom. O negócio ia de vento em popa. Mas o galego, como também conhecíamos este
tipo de vendedor, tinha um problema grave. Entornava uma cana di’cunforça. Não
poucas vezes chegava pra prestar contas chirrado. Chamando Jesus de Genésio.
Mamãe relevava. O homem dava lucro pra casa. Mas aí, quando as contas começaram
a não bater. Quando o dinheiro todo amassadinho que ele trazia para fechar o
dia, começou a ficar pelo caminho, não deu mais. Um dia que ele apareceu
sóbrio. O saldo foi demonstrado, dividido e a sociedade desfeita. Sobrou pra
mim, continuar o negócio.
Talento
para a venda e estrutura física para sair todos os dias carregando aquela
diversidade de produtos, eu não tinha. Reduzimos a pegada. Mamãe continuaria a
venda, mas restrita aos perfumes, coisinhas e encomendas. E eu faria as
cobranças que nos couberam na divisão com Severino e as novas que surgissem com
mamãe. Foi aí que de dei com a pequena.
Todo
sábado eu passava na casa dela. A mãe me recebia. Era crente. Fala mansa. Passa
pra semana. A prestação era tão baratinha. Passei umas quatro semanas só
cheirando na vara do batista. Até que um dia ela pagou uma única parcela do
atrasado. E com dinheiro grande. Não tinha troco. Embolsei e disse que na volta
acertaria.
Ocorre
que tinha um festival de sorvete na Escola Salesiana. Entretido, esqueci do
acertado. A pequena chegou, a mãe disse que eu tinha sumido com o dinheiro.
Pois ela não foi bater em casa. Anarquizou com mamãe.
No
dia seguinte, piriricas com o ocorrido, fui lá no local onde batalhava. Entrei
sem me anunciar, joguei o troco no colo dela e devo ter recitado um poema que
ela não gostou. Catou na estante a gilete. Foi aí que desci a escada do
Xendengo com mais de mil e me superei em uma salvadora carreira profissional.
De cobrador.
O universo não te abandona, sabia q querias muito mais. Eita q lembrastes coisas de nossa adolescência q meninas diretas não falavam "xendego", e háaa o nosso Festival de sorvete" lembrei nosso amigo Dino coordenando junto com outros o evento. Obrigada Sodré.
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