domingo, 29 de setembro de 2024

crônica da semana - picolezeiro

 Picolezeiro é teu... nariz

Deixa estar que nessa história de dar uma repaginada na rotina, uma forra para a qualidade de vida; para a circulação e para a suspiração em menções que valem por um bifinho, tenho que tenho batido perna por aí. Calhou d’eu, em dia bom de caminhada, varar a Duque de Caxias, bem dizer, de fora a fora. Um trecho, porém, me tornou às aventuras daquele que considero ser o meu primeiro emprego, a primeira missão social em favor de um dindim.

Morava numa vilinha, na Visconde. Tinha placa e tudo, ajeitada na parede da casa da frente. Vila Três irmãos. Nos arrumávamos num quarto/sala com banheiro e jirau fora, todos nós, os Sodreres órfãos do Acre. Ainda terminava o primário na Aparecida. Mamãe segurava nossas carteirinhas do INPS com emprego de caixa, numa panificadora ao pegado do Museu. Era uma experiência ousada de mamãe, desde a chegada dos ermos acreanos e ainda depois de viúva, era a primeira vez que saía da casa (e da proteção) de minha avó. Pensava que com a graça de Deus e o emprego na padaria, ganharia independência. Mas quando. Foi logo que o sapato apertou de prender o sangue. Ficou vasqueiro pro nosso lado. Contava eu, uns 9, 10 anos. Era um tiquinho de gente. Pequenininho, franzino. Bem abaixo da média percebida na envergadura dos meus coleguinhas da Aparecida. Mas era esperto, animado. Gostava duma bola. Explorava aquela imensidão encantadora que era o campo do Areal, com minha patota até já de noitinha. Era perto de casa.

Não teve escapatória. Para ajudar no di cumê, no di vestir e di calçar, tive que arrumar um jeito de faturar um tutu.

Mamãe conseguiu uma geladeira (que era como a gente chamava as caixas de isopor antes). Bem pequena, daquelas sem alça, formato arredondado e que acomodava pouca coisa. Pesquisou. Tinha uma sorveteria lá na Duque, logo dobrando a Lomas. Contamos uns trocados e me abalei para o primeiro dia de trabalho.

Enchi a geladeira com o que deu e saí abraçado com ela pelas ruas da porção norte da Pedreira, fronteira com o Marco. Meu horário era restrito. A aula de tarde era sagrada. Era esperto, mas era um menino tímido. Me pelava de vergonha de vender na rua. Não me dava a sair pregoando a venda, e ainda ficava piriricas, no lugar de me dar por satisfeito, quando alguém de longe me acionava, “ei, picolezeiro”. Reinava de responder “picolezeiro é teu nariz e debaixo da tua cama, o ladrão que te ama”. E aí, né... quem não se comunica... Vendia pouco e às vezes nada. Continuava vasqueiro!

A minha valência é que havia uns moleques na rua, bem despachados e pra eles aquela coisa de menino pequenino vender pelo bairro era uma novidade. Deu que eles acabaram me acompanhando. Aí rendeu. Eles faziam propaganda, atentavam, atentavam até conseguir a venda. A maior conquista deles foi um posto fixo na calçada da Escola Alzira Pernambuco. Não precisamos mais gasguitar no descampado das avenidas. Ali na frente do colégio a venda era certa e mais tranqüila. (Adianto que houve uma pausa para outro trabalho, que resultou numa indenização polpuda que recebi pra compensar muito chororô por causa da tensão de um único dia na função de office boy. Com a grana, compramos uma geladeira maior com alça e tudo. E voltei para o picolé).

O aperreio veio no rastro. Certa manhã, abarrotei a caixa, lancei a alça no ombro. Nem bem atravessei a Lomas no rumo do Alzira, a alça quebrou. Parte da carga se espalhou pela calçada. E logo os de cima que tinham maior demanda. Sabores diferentes. Uvita, groselha, morango... Não ia perder pra’quele imprevisto. E agora o prejuízo! Meus parças me esperando na calçada da escola! Mamãe ia ter um troço com aquela derrota. Olhei pros lados e não contei conversa. Limpei os picolés que escaparam da geladeira no short, joguei a caixa na cabeça e segui na esperança de vender tudo. Acreditei na lei do ‘se não mata, engorda’.

 

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

crônica da semana - carreira profissional

 Carreira profissional (pernas pra que te quero)

Desci a escada de madeira com corrimão roliço lustrado numa resina preta, com mais de mil. Aos tropeços e escorregões dei no clarão da rua. Era tarde, como se apresentam todas as recordações que tenho daquela época. Sempre era uma tarde mormacenta e de luz intensa. Dobrei no rés da calçada e embiquei no rumo da Presidente Vargas. E a pequena atrás de mim, me cuspindo, lançando tapas ao vento em tempo de me pegar. A banda da minha chinela saltou para o esquecimento da rua e logo além eu me desfiz da outra. Um lado, só me fez cachingar e perder a velocidade. Ensandecida, ela se aproveitou do meu atraso e se aproximou de mim a um triz. Descalço, recuperei e voei. Deixei a freguesa pra trás, atravessei a Assis de Vasconcelos sem perceber mais a brasa ardendo atrás de mim. O Lomas, que àquela época já cobria boa parte do território de Belém, dobrou a rua em manobra ousada, inclinando o carro e levando os passageiros ao desespero. O motora, na caté, pegou a reta. Após estabilizado no trajeto, parou bem adiante do ponto; acelerando, querendo partir de novo, o motora fez a presença, e ao ver meu sinal com o polegar de carona, abriu a porta da frente e me deixou entrar. Ofegante, descalço, meu bloco de cartões na mão bem apertadinhos na liga, pra não perder nenhum, relaxei e aliviado considerei que, se não sou rapaz, seria talhado numas boas e raivosas giletadas.

Tudo começou coisa de uma semana atrás, quando desenvolvia minha carreira de cobrador das vendas de mamãe.

Tinha lá meus 14, 15 anos. Experimentávamos uma fase boa na marretagem. Mamãe havia apostado no Crediário Santa Luzia. Fez uma associação com um cearense que vendia de porta em porta. Era um personagem comum naqueles tempos e que no vulgo a gente conhecia como ‘prestação’. O homem era fera. Mamãe fazia os investimentos e ele saía todo dia parece um amarinho ambulante. Severino levava tudo no muque. Rede, roupas, panelas, bregueçada, doces, perfumes. Mina de coisas. E vendia muito bem. Tirava o final de semana para as cobranças. Cabra bom. O negócio ia de vento em popa. Mas o galego, como também conhecíamos este tipo de vendedor, tinha um problema grave. Entornava uma cana di’cunforça. Não poucas vezes chegava pra prestar contas chirrado. Chamando Jesus de Genésio. Mamãe relevava. O homem dava lucro pra casa. Mas aí, quando as contas começaram a não bater. Quando o dinheiro todo amassadinho que ele trazia para fechar o dia, começou a ficar pelo caminho, não deu mais. Um dia que ele apareceu sóbrio. O saldo foi demonstrado, dividido e a sociedade desfeita. Sobrou pra mim, continuar o negócio.

Talento para a venda e estrutura física para sair todos os dias carregando aquela diversidade de produtos, eu não tinha. Reduzimos a pegada. Mamãe continuaria a venda, mas restrita aos perfumes, coisinhas e encomendas. E eu faria as cobranças que nos couberam na divisão com Severino e as novas que surgissem com mamãe. Foi aí que de dei com a pequena.

Todo sábado eu passava na casa dela. A mãe me recebia. Era crente. Fala mansa. Passa pra semana. A prestação era tão baratinha. Passei umas quatro semanas só cheirando na vara do batista. Até que um dia ela pagou uma única parcela do atrasado. E com dinheiro grande. Não tinha troco. Embolsei e disse que na volta acertaria.

Ocorre que tinha um festival de sorvete na Escola Salesiana. Entretido, esqueci do acertado. A pequena chegou, a mãe disse que eu tinha sumido com o dinheiro. Pois ela não foi bater em casa. Anarquizou com mamãe.

No dia seguinte, piriricas com o ocorrido, fui lá no local onde batalhava. Entrei sem me anunciar, joguei o troco no colo dela e devo ter recitado um poema que ela não gostou. Catou na estante a gilete. Foi aí que desci a escada do Xendengo com mais de mil e me superei em uma salvadora carreira profissional. De cobrador.

 

domingo, 15 de setembro de 2024

crônica da semana - mil vezes

 Mil vezes

Ao ouvir aquele encarreirado de invencionices, fiquei bestinha da silva. É que insisto em admitir a boa fé da humanidade.

Nessa minha bestice de acreditar sem eira, sofro. Fiquei muqueado de corpo e alma. Todo doído de ver uma mentira sendo contada com tanto deslambimento. E dói mais quando se trata de subversão de uma história que eu vivi de palmo em cima.

Pois estava eu numa prosa leve, retomando fatos corriqueiros, prosaicos das vivências no meio operário; e investido de uma segurança inabalável porque em todos os passos que minha categoria deu, no árduo caminho da sedimentação de uma relação capital/trabalho equilibrada, sem ninguém cozer ninguém em fogo alto, eu estive presente. Em todos! Desde as nossas peladas lá pelas onze da noite, num campinho em plena área de concentração de moradias familiares, na Vila dos cabanos, passando pelas rodadas de cerveja na fronteira dos domínios da Jacutinga, nas saída dos turnos; até os enfrentamentos formais em Brasília para a ratificação de uma representação sindical química e legalmente estável. No frigir dos ovos, esta evolução das massas operárias em Barcarena, sem presunção, domino. E quando acaba, estava ali, diante de uma fantasia.

Uma situação constrangedora, que me fez lembrar a máxima da propaganda nazista quando pregava que se uma mentira é contada mil vezes, reina ser verdade.

Uma deixa, uma dica para prestarmos cuidado com os fatos. A preservação da verdade é um trabalho árduo que a gente vê sendo abalado rotineiramente. Hoje em dia é difícil a gente identificar daqui pra’li, uma realidade reta e justa sendo defendida.

No caso da reuniãozinha em que estive envolvido, optei pela reflexão e identifiquei algumas características dessa narrativa: é comum o gerador das lorotas não ser o agente ativo da ação. Não tem história nobre ou relevante a contar dele mesmo. Daí busca iluminar o alter ego. Também é normal a pessoa não se limitar a contar o mal contado. Faz por onde parecer que ela, embora não fosse protagonista, estava ali, orbitando a trajetória de outros. Mostra-se como testemunha dos ocorridos. E elabora argumentos contundentes no sentido do ‘eu vi’, ‘eu testemunhei’, ‘eu estava lá do lado’. Esta é uma iniciativa que procura credenciar a fraude. Evidencia convicção, domínio sobre a pauta, molda a enganação em formatos inquestionáveis e cenários de referência.

Exatamente naquela ocasião eu estava na paz, querendo distância de arengas. Tratávamos de reminiscências doces. Preferi fazer uma interpretação e dar causa àquela situação. Atinei, porém, que embora doce, mentira era. E formulei um entendimento que ganha sentido nos fenômenos atuais que incentivam o apagamento ou a corrupção da história. A estratégia é sempre encontar um público alienado ou associado a um pensamento negacionista. Neste cenário, o terreno é fértil para a semeadura da versão que é mais apropriada ao potoqueiro.

Com o tempo, digeri este episódio de forma a não sofrer tanto, como aconteceu logo nos primeiros momentos em que a artimanha foi se revelando. Depois caí em campo com minhas certezas e reações possíveis. São eventos deste porte que valorizam a imprensa responsável, os geradores de conteúdos comprometidos. Vejo que a minha missão como observador de calçada é escrever os passos sociais como realmente são executados, sem tropeços, saltos milagrosos ou fantasiosos. Devo aproveitar as oportunidades que tenho para defender o verídico ocorrido. E a pesquisa é fundamental. Todos os atores estão aí para contar os fatos, existem documentos, notas, informativos, provas que facilmente desfazem a versão que ouvi naquela reuniãozinha (que deveria ser leve, coisa de rodinha do café). São evidências que precisam saltar um dia da gaveta para o registro histórico. E que não precisam ser repetidas mil vezes para se estabelecerem como verdades.

 

domingo, 8 de setembro de 2024

crônica da semana - ponto de vista

 Ponto de vista

Nós que povoamos os quadrantes da cidade grande, perdemos cada espetáculo! Tudo por causa do ponto de vista.

O que torna é que percebemos o mundo à nossa frente, restrito no alcance e no discernimento. E além: limitado à rotina e ao vuco-vuco dos grandes centros. Eu tiro por mim que, mesmo madrugador às vezes passo batido nos fatos e casos. Mesmo os absurdamente chamativos e fascinantes.

É o que vem acontecendo desde o início de agosto. Tenho acompanhado uns pontos luminosos se movimentando no céu da madrugada em trajetórias ordenadas e num arranjo plástico, robusto e acima de tudo harmonizado com a paisagem de fundo, o que dá ao movimento uma pitada de mistério, magia e muita beleza.

Só não passei batido agora porque os deslocamentos acontecem, e ainda por enquanto, um pouco acima do horizonte. E aí é que entra o nosso ponto de vista. Dispensamos atenção a aspectos observáveis limitados pela rotina, e que, pelo comum, nos leva a perceber a maioria das coisas na linha de visão horizontal, ou se muito, uma coisinha cima e, em regra, à nossa frente. Aqui, ali, num acaso, nos volvemos para os lados ou atentamos para além, para a visão periférica. Temos um sestro coletivo bem aquietado para ver o mundo. Ninguém amanhece o dia investigando o que está acima da horizontal, no alto da cabeça.

De sorte que acompanho de palmo em cima o alinhamento de Marte e Júpiter, tendo como coadjuvantes as três Marias, bem do ladinho; Sírius, a estrela mais brilhante do céu; e agora chegando na batida da campa do mês, a lua minguante. O chique da formosura e do embelezamento celeste. Quem não viu, perdeu. Porque a partir de agora, todo esse conjunto vai sair do nosso ponto de vista (aquele horizontal ou um pouquinho acima). Os astros vão caminhar para o meio do céu e mesmo que a gente supere o sestro coletivo e saia de casa olhando pra cima, além da dor no pescoço, vai rolar uma frustração, porque logo logo amanhece e a luz do sol encandeia as vistas. Outro evento deste calibre só daqui a dez anos e sabe-se lá, se ocorrerá no nosso ponto de vista ou no cocuruto do céu. Ainda bem que registrei tudo, com umas fotos pirentinhas, reconheço, de celular, mas o valeu a pena. Valeu o registro histórico.

No início mencionei pontos brilhantes e só depois os identifiquei como sendo os planetas Júpiter e Marte. E aí vem a outra parte da história. Hoje na modernidade com a ciência desvendando mistérios e a informação alargando conhecimento, a gente sabe o que são. E quais são os planetas envolvidos no alinhamento. Mas na Antiguidade...

A humanidade quando olhou pro céu (e me parece, do mesmo jeito que gente hoje, com o mesmo ponto de vista) identificou a repetição ano após ano, das mesmas estrelas, as mesmas constelações. Uma paisagem que não mudava. As três Marias eram sempre vizinhas da estrela Sírius, de Aldebarã, das Plêiades, guardando a regra e a mesma distância, também de outras estrelas mais ou menos visíveis. Agora imagine, numa freqüência de a cada dez anos, outras estrelas aparecendo, interferindo e se movimentando no meio daquele cenário estático. Nossos ancestrais piravam. O que seriam aqueles pontos brilhantes bandalhos, que avacalhavam a ordem celeste? Antes da genialidade humana agir,  a explicação para evitar sustos e impertinentes incompreensões, nossos antecessores encontravam nas narrativas míticas. Relacionaram aquelas aparições com os deuses. Eles, poderosos, interferindo e modificando o determinismo celestial. Aos pontinhos brilhantes, deram o nome dos deuses. Neste agosto em destaque e se alinhando, encontramos Marte, o deus da Guerra e Júpiter, o rei dos deuses. Contados a princípio eram só cinco, os visíveis. A ciência veio depois, achou mais quatro planetas. Refletiu critérios tirou um e hoje são oito. Todos passeando pelo infinito. Aqui, ali alinhando-se e nos desafiando a ampliar nosso ponto de vista.