Picolezeiro é teu... nariz
Deixa
estar que nessa história de dar uma repaginada na rotina, uma forra para a
qualidade de vida; para a circulação e para a suspiração em menções que valem
por um bifinho, tenho que tenho batido perna por aí. Calhou d’eu, em dia bom de
caminhada, varar a Duque de Caxias, bem dizer, de fora a fora. Um trecho,
porém, me tornou às aventuras daquele que considero ser o meu primeiro emprego,
a primeira missão social em favor de um dindim.
Morava
numa vilinha, na Visconde. Tinha placa e tudo, ajeitada na parede da casa da
frente. Vila Três irmãos. Nos arrumávamos num quarto/sala com banheiro e jirau
fora, todos nós, os Sodreres órfãos do Acre. Ainda terminava o primário na
Aparecida. Mamãe segurava nossas carteirinhas do INPS com emprego de caixa,
numa panificadora ao pegado do Museu. Era uma experiência ousada de mamãe,
desde a chegada dos ermos acreanos e ainda depois de viúva, era a primeira vez
que saía da casa (e da proteção) de minha avó. Pensava que com a graça de Deus
e o emprego na padaria, ganharia independência. Mas quando. Foi logo que o
sapato apertou de prender o sangue. Ficou vasqueiro pro nosso lado. Contava eu,
uns 9, 10 anos. Era um tiquinho de gente. Pequenininho, franzino. Bem abaixo da
média percebida na envergadura dos meus coleguinhas da Aparecida. Mas era
esperto, animado. Gostava duma bola. Explorava aquela imensidão encantadora que
era o campo do Areal, com minha patota até já de noitinha. Era perto de casa.
Não
teve escapatória. Para ajudar no di cumê, no di vestir e di calçar, tive que
arrumar um jeito de faturar um tutu.
Mamãe
conseguiu uma geladeira (que era como a gente chamava as caixas de isopor
antes). Bem pequena, daquelas sem alça, formato arredondado e que acomodava
pouca coisa. Pesquisou. Tinha uma sorveteria lá na Duque, logo dobrando a
Lomas. Contamos uns trocados e me abalei para o primeiro dia de trabalho.
Enchi
a geladeira com o que deu e saí abraçado com ela pelas ruas da porção norte da
Pedreira, fronteira com o Marco. Meu horário era restrito. A aula de tarde era
sagrada. Era esperto, mas era um menino tímido. Me pelava de vergonha de vender
na rua. Não me dava a sair pregoando a venda, e ainda ficava piriricas, no
lugar de me dar por satisfeito, quando alguém de longe me acionava, “ei,
picolezeiro”. Reinava de responder “picolezeiro é teu nariz e debaixo da tua
cama, o ladrão que te ama”. E aí, né... quem não se comunica... Vendia pouco e
às vezes nada. Continuava vasqueiro!
A
minha valência é que havia uns moleques na rua, bem despachados e pra eles
aquela coisa de menino pequenino vender pelo bairro era uma novidade. Deu que
eles acabaram me acompanhando. Aí rendeu. Eles faziam propaganda, atentavam,
atentavam até conseguir a venda. A maior conquista deles foi um posto fixo na
calçada da Escola Alzira Pernambuco. Não precisamos mais gasguitar no
descampado das avenidas. Ali na frente do colégio a venda era certa e mais
tranqüila. (Adianto que houve uma pausa para outro trabalho, que resultou numa
indenização polpuda que recebi pra compensar muito chororô por causa da tensão
de um único dia na função de office boy. Com a grana, compramos uma geladeira
maior com alça e tudo. E voltei para o picolé).
O
aperreio veio no rastro. Certa manhã, abarrotei a caixa, lancei a alça no
ombro. Nem bem atravessei a Lomas no rumo do Alzira, a alça quebrou. Parte da
carga se espalhou pela calçada. E logo os de cima que tinham maior demanda.
Sabores diferentes. Uvita, groselha, morango... Não ia perder pra’quele
imprevisto. E agora o prejuízo! Meus parças me esperando na calçada da escola!
Mamãe ia ter um troço com aquela derrota. Olhei pros lados e não contei
conversa. Limpei os picolés que escaparam da geladeira no short, joguei a caixa
na cabeça e segui na esperança de vender tudo. Acreditei na lei do ‘se não
mata, engorda’.