terça-feira, 16 de julho de 2024

crônica da semana - que rei sou eu

 Que rei sou eu?

Nem de mim, nem do mundo sei. Sou Reimundo. Sem rima que importe, sem caminhos ou sorte. Rei de um mundo frágil, facilmente alterável. uma hora escondido, outra hora universal. Em um tempo solitário, noutro, carnaval. Ora pau, ora tijolo; nem seu Souza para o gosto do freguês. Sem um fim de história que valha um era uma vez. Tudo muda.

Reconheço que nos esforços diários, não é nada fácil a gente operar dentro de uma personalidade visível e estável.

Umas experiências me deixaram conscientes destas mobilidades.

Passei boa parte da vida desenvolvendo a lida junto com uma peãozada carente de tudo em quanto. Conheci mina deles que não sabia nem escrever. Por vezes, no pé da obra, eu mesmo fazia o pagamento, repassava o contracheque e esperava de volta o canhoto assinado. Durante o tempo que interagi com este segmento dos trabalhadores, aquele era o momento mais desconcertante, Constrangedor. Alguns parcamente alfabetizados, isolavam-se abrigados à cumplicidade de uma caneta, e lá no longe, passavam um tempo desenhando cuidadosamente as letras, expondo, com algum estilo e mesmo em linhas tortas, o nome completo. A maioria, devolvia o papel assinado com garranchos indecifráveis. E uma porção bem significativa se adiantava, não sem uma ponta de vergonha, pressionava o polegar sobre a almofadinha que eu trazia comigo, e a seguir repetia a mesma pressão sobre o recibo.

Que rei? E que mundo?

A cada marca de digitais sobre o papel, meu coração se esmigalhava.

Naquela fase, ao mesmo tempo, eu convivia com um outro grupo. Trabalhadores qualificados, moldados nas graduações e nos comandos. Uma elite do saber formal. Eu era um reimundo sem canudo. Não era elite, mas era aceito naquele grupo porque rendia aos negócios, que eu fizesse o meio campo, a ligação entre os que mandam e os que só obedecem. Eu ficava por ali, então fazendo menção de poderosinho. Nesse tempo, nosso staff era pura amizade. Fazíamos encontros animadíssimos regados a muita água que passarinho não bebe, nos refestelávamos em folguedos e confraternizações. Eu tocava meu violãozinho e abria brecha para convites em festinhas mais seletivas. Éramos tipo irmãos.

Tempos mais tarde, formou-se um outro cenário. Um elo foi quebrado naquela cadeia de produção. Fiquei sem equipe. Não tinha mais a peãozada para lidar. Mas a elite estava acima de mim, me pressionando. Cobrando eficiência e produtividade. Era outra região, outras perspectivas, um recomeço em outra empresa, e como este mundo de mineração é pequeno, alguns dos líderes eram o ditos irmãos dos tempos atrás. Fui ter com eles para revisitarmos nossas boas interações. Mas quando! Não me deram ibope. Até meu nome de guerra em outras paragens, evitavam pronunciar. Nos relacionávamos pela formalidade do crachá. Cervejinha, violãozinho, nem pensar. Era eles pra lá e eu pra cá. Morávamos em alojamentos separados e fazíamos as refeições em ambientes diferentes. Não nos encontrávamos nos vagos do dia.

No meu segundo emprego, compreendi que tipo de rei eu era.

Mas enfim, reimundo, tinha um reinado.

Mais tarde, em outra jornada, voltei a trabalhar direto com os peões. E aí eu já estava escaldado. Tratava todo mundo por companheiro, nos metíamos na mata para trampo brabo privilegiando a solidariedade. Eles me ajudavam carregando minha boroca, minhas amostras e me levantavam quando eu engatava o pé no cipó e rebolava lá na frente da picada. Retribuía com jornadas menos penosas e um tempo para pescar e coletar cupuaçu. Nas folgas, eu varava na casa deles. Ouvíamos música do mundo e bebíamos o que tinha. Elite também havia e, obviamente, não se dirigia a nós como companheiros. Mantinha o distanciamento, Não sentavam à mesa com a gente. Até que anunciaram corte de pessoal. Elite na mira. Foi aí que o chefe veio, de prato na mão pedindo: “arrede aí, companheiro, me dê uma vaguinha”.

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