Pelos cinco
Minha mãe era uma jogadora do Bicho fidelíssima. Em toda rodada, fazia uma fezinha. Do claro que o dia inaugurava até o corujão, era certo um palpite, uma combinação de números, sequências sonhadas ou um presságio da hora pregando a esperançazinha de ganhar uma bolada.
Embora tenha acompanhado (e criticado) a renitência de mamãe neste jogo tido, lavrado e havido como indefensável vício, não deixava de nutrir certa admiração e muita curiosidade pela rigidez de opinião que lhe acompanhava em cada pule preenchida. O que resultava em tolerância e respeito por aquela diversão debilmente proscrita empreendida a cada dia.
Compreendi e até contribuí com os mistérios que cercam as apostas no Bicho. Um fato extraordinário marcou o meu espanto ante crenças e certezas na hora de cravar os números.
Passava uma temporada em casa, em período de férias ou por uma indesejada vacância na minha carreira profissional. Era só no come-dorme. A regra da sesta era sagrada. Dei um soninho aperreado pelo calor da tarde, mas com folga tal de me permitir sonhar. Eu juro. Apareceu no sonho um pacote de dezenas, certinhas, organizadas, discerníveis. E olha só, sou assim assim para esquecer dos sonhos. Ocorre que nessa tarde, acordei com todos os números gravados na cabeça. Logo comentei com mamãe e passei os números com a convicção total herdada do sonho. Ela anotou tudo no caderninho mantido para as contas e estatísticas que suportavam seus palpites. Apostou alto no Corujão. Quebrou a banca. Deu tudinho e ela ganhou, verdadeiramente, uma dinheirama. Eu fiquei bestinha com aquele fenômeno. Cheguei a me considerar por um breve tempo, um iluminado, um paranormal que adivinhava os casos futuros. Ilusão desfeita rapidola, muito convenientemente após mamãe ter perdido uma boa parte do prêmio, investindo em palpites envolvidos com meus superpoderes, como data do meu aniversário, datas de viagens e outras invencionices. Conformado, desanuviei dos meus dons sobrenaturais, segui meu caminho no comum da minha humanidade e creditei os fatos a uma anomalia no campo das probabilidades e das sugestões do inconsciente.
E assim, depois de um tempo na maré tranquila e calma, tratando os fenômenos à luz da razão, eis que me deparei com um caso incrível, o tanto de pôr a pulga atrás da orelha da gente, dia desses.
Soube que uma amiga ganhou no milhar. Até aí, fato bem possível, inclusive é premiação registrada em música, no acervo do Samba de Breque de Moreira da Silva. Só que não foi uma, duas, nem três vezes. Ela acerta, parece que quando quer. Dá de entender que tem dia que ela acorda na ira, cata quatro números, vai lá na banca e pã, ganha. Impressionante! E o espanto é maior quando revela os valores. ´Sempre mais de 10.000 Reais. Observa que só não ganha mais porque casa valores pequenos, ali beirando as miudezas de Reais.
Não manjo e sempre tive dificuldades para compreender as formas de jogar e de medir os pagamentos no jogo do Bicho. Mamãe me explicava. Tinha a dezena, o palpite pelos cinco, no grupo e dezena, de centena, na cabeça, o cercado de centena seca. Muitas combinas que me baratinavam a cuca. Nunca joguei no Bicho, não por nada. Não domino as manhas.
O que estimo é que acertar um milhar é difícil. Acertar mais de uma vez é extraordinário. Ser um premiado contumaz no milhar deve configurar um caso de subversão, extrapolação da razão e do consolo confortável da estatística, é superação completa de uma propriedade da natureza humana que, no vulgo, conhecemos como sorte.
Tô de férias. Herdei o caderninho de contas e probabilidades de mamãe. Os dias estão por acolá de calor. Vou arriscar um soninho à tarde. E eu que não creio nos mistérios, vou sintonizar nos adivinhos. Bora ver se rola um milhar. Ou pelo menos uma presença pelos cinco que me volte o consolo do escrito e do casado.
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