sábado, 27 de julho de 2024

Crônica da semana - plataforma desta estação

 A plataforma desta estação é a vida

Eu que nem creio, tá bom, tá bom... não sei se creio. Tenho em mim ainda uns toques salesianos poderosíssimos. Eu que duvideodó, tô na paz com o bom pai pela graça dos reencontros.

Amigos a gente não escolhe, nem encomenda. Estão nas frestas adamantinas da história, nos veios enriquecidos de ouro e vida. Não têm roupas coloridas, não se maquilam ou se enfeitam. Por outro lado, as sólidas amizades mostram-se em uma indiscrição silente, em índices reveladores, grafismos sinalizadores de coraçõezinhos e mãos dadas. Exibem-se em pistas atraentes, como se apontando caminhos atapetados de chocolates finos, leite e mel. Reluzem paz pelo céu infinito, pelo mar distante, além dos entendimentos e lógicas.

As forças mais legais, forjadoras de bem e bom da natureza arquitetam esbarrões oportunos, cruzamentos de afinidades, de curiosidades mútuas, e as relações, as convivências vão se tornando adocicadas, cheias de energias e comoções. A eletricidade circula pelos poros, pela mente e ativa a simpatia, a admiração, o querer estar junto, a ânsia por uma partilha de opinião, de conhecimento, o desejo de um bom papo a toda hora... uma certa e saudável dependência, o alheamento de outras seduções, a fidelidade, o mimetismo, a leitura de pensamentos um do outro, as reações paralelas, o olhar igual; introdução, desenvolvimento e conclusão em idênticas passagens, como o lembrete abrigado na manga da camisa de um ginasiano descolado.

Inevitavelmente, a vida avança. Ocorrem os lapsos, os apartamentos. Encantos, inspirações vão se distanciando no tempo e no espaço deste Brasil imenso.

Algumas amizades distam nas eras ou, de outra forma, superam o passar dos anos inquebrantáveis, adensadas como as rochas mais resistentes, apesar das intempéries que, olha, olha, são muitas. Por vezes, os longes se manifestam em imagens de um cenário doméstico remontando uma pilha avermelhada de edições antigas da revista Superinteressante, walkie talkies sem pilha, headphones com chiados roucos em disposições caóticas sobre um estrado na calçada da feira da Pedreira. E folguedos juninos protagonizados por silhuetas matinais pardas desenhados em coreografias de esquina. Ou em um céu minado de estrelas e povoado de um jeito que mal dá pra identificar o nicho das Plêiades do jeito aquele que o mestre ensinou. A imagem de um barranco de aspecto sedoso rondoniense, e a dinâmica criadora de um magma viscoso, lento e diverso ascendendo do fundo da Terra, também trazem a idéia de afinidades químicas, emocionais, intelectuais cristalizando respeito, carinho, benquerença.

As amizades vão acontecendo, criando forma, se ramificando e ganhando envergadura, tal os rios que se estendem a bocados. Vingam calçando as vias dos tempos com camadas rijas de inspiração, admiração e saudades.

Desde o ano passado, quando passei as férias em Minas Gerais e reencontrei dois grandes, imensos amigos do tempo da mineração em Rondônia, minha graça foi, ó, lá pra cima. Superou o milhão do Hulk. Confirmando que é certo e justo um amigo ser bem mais valioso que umas cifras na casa do milhão em Reais. Este ano, reencontrei a família Moscoso, no Rio de janeiro.

As palavras têm um peso muito pequeno para significar o meu contentamento com este reencontro. Nossas famílias, nossas crianças, o menino que carreguei no colo. Os compromissos éticos e mundanos que mantemos ativos. A cuia de tacacá que levei de Icoaraci para Rondônia há quarenta anos e que até hoje orna uma prateleira de destaque na decoração da casa deles.

Nos reencontramos depois de tanto tempo! Entendendo da mesma forma, a quantidade de futuros que se encontrava naquela rodoviária de Porto Velho. E que nos chamava a atenção. A plataforma daquela estação era o início de muita coisa.

A plataforma dessa estação amizade é a vida. É o nosso lugar. Salve!

Que o bom deus cuide e zele das minhas amizades

quarta-feira, 24 de julho de 2024

domingo, 21 de julho de 2024

crônica da semana - hirondelle

 Entre as hélices do Hirondelle

A primeira vez que entrei em um avião, foi num Hirondelle da TABA. Era uma nave clássica, tradicional. Tinha uma relação colaborativa, funcional e ao mesmo tempo afetuosa com a região amazônica. Cruzava os céus da floresta carregando sonhos, atenuando saudades, ativando metas, expectativas. E transportando a minha turma de Mineração em visita ao projeto de bauxita às margens do rio Trombetas, no início dos anos 80, naquela primeira vez que ganhei os céus. Um detalhe lhe atraía a atenção do mais desatento passageiro. As enormes hélices instaladas em cada uma das asas. Um desenho aerodinâmico subversivo que nos envolvia em um tempo instintivamente pretérito. Um tempo apegado ao passado, num presente em que os aviões já adotavam os poderosos motores a jato. Fazia as vezes, a aeronave da TABA, de uma relíquia, de aspecto ultrapassado, envelhecido, retrô radical, se comparada, ali de palmo em cima com os 737 da vida, nos estacionamentos de aeroportos. E nem era. No limite do seu cada qual, dava a mesma conta do recado dos grandalhões e posudos pra lá de turbinados. Chegava em escondidos de rios e florestas que nenhum outro vôo comercial chegava. Dominava os rincões. E também não são de forma alguma, conceitos ultrapassados. Em muitas rotas pelo Brasil, os aviões de hélice ainda operam. Os da TABA sim, abandonaram as coordenadas dos ares. Estes sim, datam do antigamente. Do tempo em que fazíamos rolés pelos corredores da Escola Técnica e íamos dar nas beiras de rio.

Tenho o avião como uma das criações humanas mais extraordinárias, di rocha, e de certo, arte sublime, elevada. Quase milagre. Impressiona sem lapso o meu tino, a minha razão. Agora, durante as férias, visitando a netinha no Rio, fiquei horas no aeroporto, acompanhando encantado, dezenas de pousos e decolagens. Suspirando. Pensando coisas como ‘é verdade, é verdade, o ser humano é incrível, genial. Como põe no ar uma monstro desse’. Impressionante. É reconfortante, a mim, perceber e admitir esta grandiosidade do engenho que vem do dentro do nosso cocuruto.

(Como também, me dei por satisfeito ao constatar que lá no Rio de janeiro, aquele passeio aleatório que a gente faz com a galera, do jeito que era pelos corredores da ETFPA, com minha turma, nas horas vagas da tarde quente, é conhecido como rolé. Deste jeitinho, com este ‘é’ aberto, ao contrário do vulgo dominante que dá uma pronúncia fechada ao ‘é’. Comum a gente ouvir, até em notas da imprensa, divulgação de rolês realizados ou programados pela garotada. Eu sempre achei estranho. Lá no meu tempo, das hélices nas asas dos aviões e da TABA, eu falava rolé. Aliás, até hoje, quando necessário, me recuso, veementemente a pronunciar a forma fechada rolê. Assumido como um genuíno oxítona, digo que a galerinha carioca me representa. Olé, Sodré. Roléééééé. Salve, salve o ‘é’ aberto!).

Um avião se sustentar no ar é algo fascinante e para muitos, inexplicável. Eu mesmo não entendo. Vou no raso. Seguro algo com a mão e, se de repente, largo no espaço. Logo o objeto cai no chão. Este é o empirismo a mim permitido. Até abonado pela lei do Newton. Resultado óbvio, esperado e de natuteza, convenientemente respeitável (ninguém larga o corpo a partir de um desnível, no espaço, e espera, na boa, mesmo que com as asas de Ícaro, flutuar).

A inventividade, a ciência, ferramentas tecnológicas incríveis nos dão caminhar pelo céu. Há uma explicação. O céu não é um vazio. A forma das asas, diferença de pressão do ar sobre as asas, formação de ventos turbinados, e o domínio do saber fazem esta belezura desfilar pelos nossos céus. E me dão, sempre que posso, andar por estas margens de rio pra lá e pra cá, desde aquele dia em que embarquei na TABA e mergulhei nas nuvens ombreado pelas hélices do Hirondelle.

 

 

 

terça-feira, 16 de julho de 2024

crônica da semana - que rei sou eu

 Que rei sou eu?

Nem de mim, nem do mundo sei. Sou Reimundo. Sem rima que importe, sem caminhos ou sorte. Rei de um mundo frágil, facilmente alterável. uma hora escondido, outra hora universal. Em um tempo solitário, noutro, carnaval. Ora pau, ora tijolo; nem seu Souza para o gosto do freguês. Sem um fim de história que valha um era uma vez. Tudo muda.

Reconheço que nos esforços diários, não é nada fácil a gente operar dentro de uma personalidade visível e estável.

Umas experiências me deixaram conscientes destas mobilidades.

Passei boa parte da vida desenvolvendo a lida junto com uma peãozada carente de tudo em quanto. Conheci mina deles que não sabia nem escrever. Por vezes, no pé da obra, eu mesmo fazia o pagamento, repassava o contracheque e esperava de volta o canhoto assinado. Durante o tempo que interagi com este segmento dos trabalhadores, aquele era o momento mais desconcertante, Constrangedor. Alguns parcamente alfabetizados, isolavam-se abrigados à cumplicidade de uma caneta, e lá no longe, passavam um tempo desenhando cuidadosamente as letras, expondo, com algum estilo e mesmo em linhas tortas, o nome completo. A maioria, devolvia o papel assinado com garranchos indecifráveis. E uma porção bem significativa se adiantava, não sem uma ponta de vergonha, pressionava o polegar sobre a almofadinha que eu trazia comigo, e a seguir repetia a mesma pressão sobre o recibo.

Que rei? E que mundo?

A cada marca de digitais sobre o papel, meu coração se esmigalhava.

Naquela fase, ao mesmo tempo, eu convivia com um outro grupo. Trabalhadores qualificados, moldados nas graduações e nos comandos. Uma elite do saber formal. Eu era um reimundo sem canudo. Não era elite, mas era aceito naquele grupo porque rendia aos negócios, que eu fizesse o meio campo, a ligação entre os que mandam e os que só obedecem. Eu ficava por ali, então fazendo menção de poderosinho. Nesse tempo, nosso staff era pura amizade. Fazíamos encontros animadíssimos regados a muita água que passarinho não bebe, nos refestelávamos em folguedos e confraternizações. Eu tocava meu violãozinho e abria brecha para convites em festinhas mais seletivas. Éramos tipo irmãos.

Tempos mais tarde, formou-se um outro cenário. Um elo foi quebrado naquela cadeia de produção. Fiquei sem equipe. Não tinha mais a peãozada para lidar. Mas a elite estava acima de mim, me pressionando. Cobrando eficiência e produtividade. Era outra região, outras perspectivas, um recomeço em outra empresa, e como este mundo de mineração é pequeno, alguns dos líderes eram o ditos irmãos dos tempos atrás. Fui ter com eles para revisitarmos nossas boas interações. Mas quando! Não me deram ibope. Até meu nome de guerra em outras paragens, evitavam pronunciar. Nos relacionávamos pela formalidade do crachá. Cervejinha, violãozinho, nem pensar. Era eles pra lá e eu pra cá. Morávamos em alojamentos separados e fazíamos as refeições em ambientes diferentes. Não nos encontrávamos nos vagos do dia.

No meu segundo emprego, compreendi que tipo de rei eu era.

Mas enfim, reimundo, tinha um reinado.

Mais tarde, em outra jornada, voltei a trabalhar direto com os peões. E aí eu já estava escaldado. Tratava todo mundo por companheiro, nos metíamos na mata para trampo brabo privilegiando a solidariedade. Eles me ajudavam carregando minha boroca, minhas amostras e me levantavam quando eu engatava o pé no cipó e rebolava lá na frente da picada. Retribuía com jornadas menos penosas e um tempo para pescar e coletar cupuaçu. Nas folgas, eu varava na casa deles. Ouvíamos música do mundo e bebíamos o que tinha. Elite também havia e, obviamente, não se dirigia a nós como companheiros. Mantinha o distanciamento, Não sentavam à mesa com a gente. Até que anunciaram corte de pessoal. Elite na mira. Foi aí que o chefe veio, de prato na mão pedindo: “arrede aí, companheiro, me dê uma vaguinha”.

crônica da semana - pelos cinco

 Pelos cinco

Minha mãe era uma jogadora do Bicho fidelíssima. Em toda rodada, fazia uma fezinha. Do claro que o dia inaugurava até o corujão, era certo um palpite, uma combinação de números, sequências sonhadas ou um presságio da hora pregando a esperançazinha de ganhar uma bolada.

Embora tenha acompanhado (e criticado) a renitência de mamãe neste jogo tido, lavrado e havido como indefensável vício, não deixava de nutrir certa admiração e muita curiosidade pela rigidez de opinião que lhe acompanhava em cada pule preenchida. O que resultava em tolerância e respeito por aquela diversão debilmente proscrita empreendida a cada dia.

Compreendi e até contribuí com os mistérios que cercam as apostas no Bicho. Um fato extraordinário marcou o meu espanto ante crenças e certezas na hora de cravar os números.

Passava uma temporada em casa, em período de férias ou por uma indesejada vacância na minha carreira profissional. Era só no come-dorme. A regra da sesta era sagrada. Dei um soninho aperreado pelo calor da tarde, mas com folga tal de me permitir sonhar. Eu juro. Apareceu no sonho um pacote de dezenas, certinhas, organizadas, discerníveis. E olha só, sou assim assim para esquecer dos sonhos. Ocorre que nessa tarde, acordei com todos os números gravados na cabeça. Logo comentei com mamãe e passei os números com a convicção total herdada do sonho. Ela anotou tudo no caderninho mantido para as contas e estatísticas que suportavam seus palpites. Apostou alto no Corujão. Quebrou a banca. Deu tudinho e ela ganhou, verdadeiramente, uma dinheirama. Eu fiquei bestinha com aquele fenômeno. Cheguei a me considerar por um breve tempo, um iluminado, um paranormal que adivinhava os casos futuros. Ilusão desfeita rapidola, muito convenientemente após mamãe ter perdido uma boa parte do prêmio, investindo em palpites envolvidos com meus superpoderes, como data do meu aniversário, datas de viagens e outras invencionices. Conformado, desanuviei dos meus dons sobrenaturais, segui meu caminho no comum da minha humanidade e creditei os fatos a uma anomalia no campo das probabilidades e das sugestões do inconsciente.

E assim, depois de um tempo na maré tranquila e calma, tratando os fenômenos à luz da razão, eis que me deparei com um caso incrível, o tanto de pôr a pulga atrás da orelha da gente, dia desses.

Soube que uma amiga ganhou no milhar. Até aí, fato bem possível, inclusive é premiação registrada em música, no acervo do Samba de Breque de Moreira da Silva. Só que não foi uma, duas, nem três vezes. Ela acerta, parece que quando quer. Dá de entender que tem dia que ela acorda na ira, cata quatro números, vai lá na banca e pã, ganha. Impressionante! E o espanto é maior quando revela os valores. ´Sempre mais de 10.000 Reais. Observa que só não ganha mais porque casa valores pequenos, ali beirando as miudezas de Reais.

Não manjo e sempre tive dificuldades para compreender as formas de jogar e de medir os pagamentos no jogo do Bicho. Mamãe me explicava. Tinha a dezena, o palpite pelos cinco, no grupo e dezena, de centena, na cabeça, o cercado de centena seca. Muitas combinas que me baratinavam a cuca. Nunca joguei no Bicho, não por nada. Não domino as manhas.

O que estimo é que acertar um milhar é difícil. Acertar mais de uma vez é extraordinário. Ser um premiado contumaz no milhar deve configurar um caso de subversão, extrapolação da razão e do consolo confortável da estatística, é superação completa de uma propriedade da natureza humana que, no vulgo, conhecemos como sorte.

Tô de férias. Herdei o caderninho de contas e probabilidades de mamãe. Os dias estão por acolá de calor. Vou arriscar um soninho à tarde. E eu que não creio nos mistérios, vou sintonizar nos adivinhos. Bora ver se rola um milhar. Ou pelo menos uma presença pelos cinco que me volte o consolo do escrito e do casado.