A rua
Nós dois, em termos de coisas e de temas, nos
embaralhamos. Nos mimetizamos na desgovernada saudade. Março nos chega atiçando
medos. Mas o que incomoda mesmo é esta solidão compulsória, este ausente
presente. Este futuro oco. Sem pé nem cabeça nessa semana de março que devastou
minha alma, acudi-me a Argelzinho meu filho, e me alento no exercício de
duvidar quem é ele e que sou eu, por aí, pela rua...
“Eu mesmo sempre fui um rueiro
curioso. Aprendi primeiro todos os bairros e ruas que o charmoso Pedreira-Lomas
dava o ar da sua graça. Descobri a Cidade Velha, as vielas do Jurunas e do
Guamá. Quando fiquei grandinho, explorei as belezas da noite de sexta-feira. Que
pulsava música, alegria, medo e violência - tudo o que o brasileiro gosta - nas
ruas escuras do centro. Na volta pra casa, eu apostava no infalível
Pedreira-Condor.
O meu grupinho começava o
circuito noturno no Meu Garoto, dava uns goles na cachaça de Jambu pra
esquentar e tinha conversas um pouco mais tímidas sem tantas complexidades
alcóolicas. Depois, atravessava a Praça da República sentido Bar do Parque,
quase sempre cantando, carimbolando, sambando, pulando, frescando.
Nós chegávamos à batucada,
pedíamos umas geladas - quase sempre quentes - ficávamos na nossa rodinha, bebendo,
contando mentira, com o teor alcoólico lá em cima, a imaginação viajava pela
copa das mangueiras… Ali, pensava um dia me tornar geólogo, quem sabe escrever
crônicas sobre a noite, o tambor, a vida.
Lá pelo meio da semana, a rua
chamava de novo. Dava pra sentir o gosto da cerveja gelada na boca, vocês sabem
como é, o explodir de bolhas com o sabor amarguinho. A galera se arrumava toda
desde cedo e emendava o caminho do dever, direto pro querer, pro Oito.
Ali, naquela esquina da Dr.
Moraes com a José Malcher, ficava o bar que me iniciou, lá tomei meu primeiro
porre de cerveja e fumei meu primeiríssimo cigarro. Falávamos de amor, de
Belém, de música, divagávamos sobre o capitalismo, o socialismo. Nossas maiores
preocupações eram o horário do ônibus e a vizinha - boatos que faltei um dia e,
no dito, ela jogou um balde de água na galera -. além dos ônibus que vinham em
alta velocidade na curva Palacete Bolonha, remexendo nossas cabeças de bêbados,
nos lembrando da finidade da vida e da noite. Era um te esperta, moleque!
Um dia voltando pra casa, num
banco solitário, no último Pedreira-Condor, olhando as
ruas, pensei na truculência do Poder, e me impressionava a convicção de
que aqueles 15, 20 jovens traziam algum perigo à sociedade, com um litrão numa
mão e um cigarro entre os dedos da outra. Quase sempre com roupas de tons
pastéis, cabeludos, apaixonados por alguém ou por alguma coisa, beijavam-se e
abraçavam-se.
Parece que todas as vezes que
escrevo tenho saudade de algum momento da minha vida. Meu único desejo sempre
foi o fim desse pesadelo. Há um ano não vivo a rua, o sol ou a lua, nem a
amizade. Imploro que se você puder, fique em casa e não aposte na sorte, hoje
vivemos o auge do terror presidencial e viral.
Agora o “8ito”é livro. Paloma
Franca Amorim nos contará sobre a tentativa de apagar até o fogo noturno na
nossa acalorada cidade. Estou ansioso pra passear de novo pelas ruas escuras do
centro, pelos largos, encruzilhadas e praças, que me fazem ouvir de novo os
sons dos batuques compassados de samba e carimbó. Perdi o medo dos livros que
falam do mundo lá fora, viajo nas palavras e faço da minha mente a nossa livre
rua.”
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