sábado, 22 de abril de 2017

crônica da semana -fóssoro

A vela e o fós’soro
Agora, pela semana santa, me purificando das faltas e enfezos que me consomem durante o ano todo, nas águas fartas de Cotijuba, me vi repetindo, sem tirar nem pôr, as manias da mamãe.
É assim, uma esquisitice da parte de tramela, de trinco, de fechadura, essas coisas. E sempre mais aguçada à noite, antes de dormir.
Mamãe era muito cismada nas arrumações da casa, ao final do dia. Privilegiava a segurança. Ajeitava, ajustava, ia, voltava, tornava a ir. Até que tudo estivesse verificado e certificado, não se aquietava. Por fim, se acomodava, sintonizava a televisão no Sílvio e não dormia sem antes acomodar sob a rede, em posição logo à mão, um cotoco de vela e o fós’soro (mamãe, não sei por quais cargas d’água, declinava da correta loução para fósforo. Falava ‘fóssoro’, e eu pra estilizar o traço, reproduzo da forma que se lê no título desta crônica, com apóstrofo e tal). Dos pavores que tinha, acordar no meio da noite em plena escuridão era o pior.
Aconteceu que em Cotijuba, depois de um dia explorando a ilha, e de noitinha já se entregando aos reclamos do cansaço, todo mundo se recolheu cedo. Eu fui o pri. O custo foi tomar um leite morninho. Enchinei na rede roncando um ronco pra lá de turbinado, mas o povo, que também na baba estava, nem thum para o meu trovejar. Foi atrás. E mais com pouco cada qual em sua rede, estava dormindo.
Mas deixa estar, que no meio da noite, acordei meio zonzo. A casa estava o puro breu, o que me inquietou. Procurei o chinelo e já espertinho, pirei com a constatação de que todas as janelas do compartimento em que dormíamos, estavam abertas. Pronto. Acabou a tranquilidade. Fiquei num pé e noutro. Abri a porta, espiei longe. Procurei um céu especial de estrelas, mas nada. Um nublado frio e denso tornava a noite um tanto assustadora. Fiquei com medo de visagem, capelobo, vira-porco, matinta e mais que depressa voltei para a minha redinha. Bolei, bolei. Virei prum lado, pro outro, me embrulhei dos pés à cabeça. Mas quede sono? Cutuquei minha mulher e chamei baixinho pelo nome dela, pra não acordar os outros. Ela despertou atarantada, percebeu meu desassossego, mas adiante, entendeu meu medo. Levantou, fechou as janelas, passou a chave na porta e me liberou pra dormir um sono de paz.
Houvesse um céu salpicado de estrelas, o sono esperaria mais um pouco. A gente continuaria a explorar Cotijuba, agora de pescoço esticado esperando uma estrela cadente, adivinhando um formato de constelação, contando pontinhos brilhantes no espaço limitado entre os dedos em hashtag.
Os tempos são plúmbeos e frios. Penso que, antes, mamãe não tinha medo.Tinha mania, que é coisa diferente. Reflito tentando decifrar esta minha herança de costumes. Será que não transformei uma ronda prosaica de fim de noite em uma missão paranóica?
A cidade, e mesmo os arredores, os arrabaldes, as ilhas bucólicas me são desafios a enfrentar. Assim, da parte de tramela, de trinco de fechaduras...
Minha valência é que, questão não faço de um cotoco de vela e o fós’soro ao pé da cama. Meu celular tem lanterna. Tenho que resistir.



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