A vela e o fós’soro
Agora, pela semana santa, me purificando das
faltas e enfezos que me consomem durante o ano todo, nas águas fartas de
Cotijuba, me vi repetindo, sem tirar nem pôr, as manias da mamãe.
É assim, uma esquisitice da parte de tramela,
de trinco, de fechadura, essas coisas. E sempre mais aguçada à noite, antes de
dormir.
Mamãe era muito cismada nas arrumações da
casa, ao final do dia. Privilegiava a segurança. Ajeitava, ajustava, ia,
voltava, tornava a ir. Até que tudo estivesse verificado e certificado, não se
aquietava. Por fim, se acomodava, sintonizava a televisão no Sílvio e não
dormia sem antes acomodar sob a rede, em posição logo à mão, um cotoco de vela
e o fós’soro (mamãe, não sei por quais cargas d’água, declinava da correta
loução para fósforo. Falava ‘fóssoro’, e eu pra estilizar o traço, reproduzo da
forma que se lê no título desta crônica, com apóstrofo e tal). Dos pavores que
tinha, acordar no meio da noite em plena escuridão era o pior.
Aconteceu que em Cotijuba, depois de um dia explorando
a ilha, e de noitinha já se entregando aos reclamos do cansaço, todo mundo se
recolheu cedo. Eu fui o pri. O custo foi tomar um leite morninho. Enchinei na
rede roncando um ronco pra lá de turbinado, mas o povo, que também na baba
estava, nem thum para o meu trovejar. Foi atrás. E mais com pouco cada qual em
sua rede, estava dormindo.
Mas deixa estar, que no meio da noite,
acordei meio zonzo. A casa estava o puro breu, o que me inquietou. Procurei o
chinelo e já espertinho, pirei com a constatação de que todas as janelas do
compartimento em que dormíamos, estavam abertas. Pronto. Acabou a tranquilidade.
Fiquei num pé e noutro. Abri a porta, espiei longe. Procurei um céu especial de
estrelas, mas nada. Um nublado frio e denso tornava a noite um tanto
assustadora. Fiquei com medo de visagem, capelobo, vira-porco, matinta e mais
que depressa voltei para a minha redinha. Bolei, bolei. Virei prum lado, pro
outro, me embrulhei dos pés à cabeça. Mas quede sono? Cutuquei minha mulher e
chamei baixinho pelo nome dela, pra não acordar os outros. Ela despertou
atarantada, percebeu meu desassossego, mas adiante, entendeu meu medo.
Levantou, fechou as janelas, passou a chave na porta e me liberou pra dormir um
sono de paz.
Houvesse um céu salpicado de estrelas, o sono
esperaria mais um pouco. A gente continuaria a explorar Cotijuba, agora de
pescoço esticado esperando uma estrela cadente, adivinhando um formato de
constelação, contando pontinhos brilhantes no espaço limitado entre os dedos em
hashtag.
Os tempos são plúmbeos e frios. Penso que,
antes, mamãe não tinha medo.Tinha mania, que é coisa diferente. Reflito
tentando decifrar esta minha herança de costumes. Será que não transformei uma
ronda prosaica de fim de noite em uma missão paranóica?
A cidade, e mesmo os arredores, os
arrabaldes, as ilhas bucólicas me são desafios a enfrentar. Assim, da parte de
tramela, de trinco de fechaduras...
Minha valência é que, questão não faço de um
cotoco de vela e o fós’soro ao pé da cama. Meu celular tem lanterna. Tenho que
resistir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário