sábado, 29 de abril de 2017

crônica da semana - caiapós

No céu como diamantes
As estrelas são os diamantes do céu.
E uma imagem de um céu riquíssimo, minado de cristais brilhantes me tem ocupado o cocuruto nessas últimas semanas, nas horas em que me envolvo com o livro “A Batalha do Riozinho do Anfrísio”, do escritor paraense André Nunes. Esta imensidão estrelada aconteceu para mim, em noite inesquecível às margens do rio Xingu.
A história que André conta no livro acontece também nas vastas paragens do Xingu.
Foi uma noite de entontecer. Estava acampado com minha equipe na borda sul do rio, em uma das lagoas formadas durante o verão. Depois do trabalho, eu normalmente me recolhia à rede e, debaixo do mosquiteiro, lia alguma coisa à luz de lampião, até o sono chegar. Por esse tempo, aproveitando uma trégua das carapanãs, que por ali, davam na canela, a turma se demorava um pouco, no dominó, no baralho ou numa prosa vã. Numa noite quente, desci para um papo com o pessoal, na areia, bem na beirinha da lagoa. O lugar era afastado e a pouca luz nos dava contemplar um cenário deslumbrante. Tão impressionante, tão inebriante, que se aproximava de um caos prazeroso, um transe letal. Centenas de milhares de diamantes brilhando no céu. Nunca mais vi noite igual. E aquela imagem, jamais esqueci. Para mim o maior tesouro, a noite mais bela está ali, nos céus do Xingu.
André Nunes narra no livro dele, as histórias que, em recortes salteados, eu ouvia, quando morei em Altamira. Os confrontos entre os índios e seringueiros eram passagens constantes nas noites do meu acampamento (cheguei a reproduzir em uma crônica aqui no jornal, o relato de um cozinheiro que trabalhou comigo e que, em tempos remotos, fugiu com a família de um ataque de índios. Fugiu atirando. O título que dei à crônica, anuncia a gravidade da aventura: “44 papo amarelo”); Sabia, já, das campanhas violentas de revides (no livro ele conta que em um ataque Caiapó, uma criança, da família do seringueiro é segura pelas pernas, por um guerreiro, é lançada com força e tem a cabeça estourada contra um esteio, fincado no meio do barraco. Conheço outra versão que conta que quem teve a cabeça estourada contra a tora de madeira foi um indiozinho Caiapó. Nas duas versões  versa a brutalidade). Aprendi também a substituir o didático tacape, que era o nome pelo qual conhecia, dos livros do primário, a poderosa arma indígena, por borduna. Uma peça de madeira cilíndrica, densa, de uma tenacidade tão bruta que, em batalha, tinha a capacidade de partir um cristão ao meio.
O desfecho do conflito, percebi, ao conhecer várias famílias construídas a partir da união de índios e seringueiros. Relação que me deu ter como companheiros de trabalho Pedro Cruz, o índio louro; Seu Zé, índio pequenininho; Chico, o arredio; Elcino, índio com sotaque. Todos ali se envergonhando, na roda de conversa, quando eu pedia que cortassem uma gíria caiapó.

Paisagens, trechos de praia, corredeiras, pedrais, rebojos e mansidões, índios amigos, são retratos ainda nítidos do grande rio. São histórias que se cruzam brilhantes no meu céu e no céu do Xingu, como diamantes.

sábado, 22 de abril de 2017

crônica da semana -fóssoro

A vela e o fós’soro
Agora, pela semana santa, me purificando das faltas e enfezos que me consomem durante o ano todo, nas águas fartas de Cotijuba, me vi repetindo, sem tirar nem pôr, as manias da mamãe.
É assim, uma esquisitice da parte de tramela, de trinco, de fechadura, essas coisas. E sempre mais aguçada à noite, antes de dormir.
Mamãe era muito cismada nas arrumações da casa, ao final do dia. Privilegiava a segurança. Ajeitava, ajustava, ia, voltava, tornava a ir. Até que tudo estivesse verificado e certificado, não se aquietava. Por fim, se acomodava, sintonizava a televisão no Sílvio e não dormia sem antes acomodar sob a rede, em posição logo à mão, um cotoco de vela e o fós’soro (mamãe, não sei por quais cargas d’água, declinava da correta loução para fósforo. Falava ‘fóssoro’, e eu pra estilizar o traço, reproduzo da forma que se lê no título desta crônica, com apóstrofo e tal). Dos pavores que tinha, acordar no meio da noite em plena escuridão era o pior.
Aconteceu que em Cotijuba, depois de um dia explorando a ilha, e de noitinha já se entregando aos reclamos do cansaço, todo mundo se recolheu cedo. Eu fui o pri. O custo foi tomar um leite morninho. Enchinei na rede roncando um ronco pra lá de turbinado, mas o povo, que também na baba estava, nem thum para o meu trovejar. Foi atrás. E mais com pouco cada qual em sua rede, estava dormindo.
Mas deixa estar, que no meio da noite, acordei meio zonzo. A casa estava o puro breu, o que me inquietou. Procurei o chinelo e já espertinho, pirei com a constatação de que todas as janelas do compartimento em que dormíamos, estavam abertas. Pronto. Acabou a tranquilidade. Fiquei num pé e noutro. Abri a porta, espiei longe. Procurei um céu especial de estrelas, mas nada. Um nublado frio e denso tornava a noite um tanto assustadora. Fiquei com medo de visagem, capelobo, vira-porco, matinta e mais que depressa voltei para a minha redinha. Bolei, bolei. Virei prum lado, pro outro, me embrulhei dos pés à cabeça. Mas quede sono? Cutuquei minha mulher e chamei baixinho pelo nome dela, pra não acordar os outros. Ela despertou atarantada, percebeu meu desassossego, mas adiante, entendeu meu medo. Levantou, fechou as janelas, passou a chave na porta e me liberou pra dormir um sono de paz.
Houvesse um céu salpicado de estrelas, o sono esperaria mais um pouco. A gente continuaria a explorar Cotijuba, agora de pescoço esticado esperando uma estrela cadente, adivinhando um formato de constelação, contando pontinhos brilhantes no espaço limitado entre os dedos em hashtag.
Os tempos são plúmbeos e frios. Penso que, antes, mamãe não tinha medo.Tinha mania, que é coisa diferente. Reflito tentando decifrar esta minha herança de costumes. Será que não transformei uma ronda prosaica de fim de noite em uma missão paranóica?
A cidade, e mesmo os arredores, os arrabaldes, as ilhas bucólicas me são desafios a enfrentar. Assim, da parte de tramela, de trinco de fechaduras...
Minha valência é que, questão não faço de um cotoco de vela e o fós’soro ao pé da cama. Meu celular tem lanterna. Tenho que resistir.



domingo, 16 de abril de 2017

crônica da semana:dordolho

Caso de amor, cólica ou dordolho
Primeiro: ajusto o fone de ouvido, sintonizo o celular na minha rádio preferida e daí ganho meu rumo no final da tarde. Uma rotina que há muito eu estava a fim, esta de interagir com o agito do centro da cidade no fim do expediente. E vou sacando. O cenário, as pessoas, os vícios, costumes e imperfeições.
Um sinal de como foi o dia, é o vendedor de coco que fica no largo das Mercês. Se ele ainda está ali, naquela hora, quer dizer que o dia foi frio (Belém 23 graus), o povo não se animou e a venda foi pouca. Por causa disso, vai aventurar até mais tarde. Enquanto bato o pé na praça Visconde do Rio Branco e interpreto o tempo e a temperatura, a moça da ótica passa por mim. Aparece sempre descendo a escada na outra quina da praça. Com a postura, elegância, cílios postiços e salto alto de vendedora de ótica. Outro dia, quando nos cruzamos, percebi que chorava. Imaginei coisa ruim, desemprego. Mas não. Nos dias seguintes, nos topamos de novo. Ainda bem que continua empregada. Deve ter sido algo de amor ou de cólica, ou mesmo de dordolho por causa dos cílios grandes.
Após a estátua do doutor Gama malcher, confirmo que a mureta que fica pros lados do belo casario, é um autêntico mictório público. Não tem um dia que eu não flagre um cidadão fazendo xixi ali. E sem cerimônia alguma. Na maior naturalidade. As pessoas passando, os ambulantes se desmobilizando, fregueses escolhendo coisinhas na feirinha ao pegado e ele ali, se aliviando na maior. Na Santo Antônio, me deparo com o relógio lá no alto da Paris N’América, que não funciona, e que marca a mesma hora toda a vida. Um trabalhador, como sem falta, recolhe as travas de uma porta metálica, acomodadas na calçada do prédio abandonado em frente. Barraquinhas cobertas com lonas azuis pingando o restinho de chuva da tarde entremeiam-se às calçadas falhadas, assentam-se sobre um trilho silencioso e rompem o paralelismo dos paralelepípedos, expurgados do leito da rua. A loja mais animada da cidade surge no meu flanco direito. Barulhenta que só ela, mas com certa graça. No final do dia, os vendedores se agrupam à entrada, ainda acesos. Dançam, sorriem uns para os outros, vivem um momento deles, de missão cumprida. Ainda vou comprar um isto ou um aquilo naquela loja. Talvez um pouco de ânimo com o futuro ou um fogão de seis bocas.
Ao despontar na Presidente Vargas, faço uma leitura da minha parada. Antevejo se meu ônibus vai lotar ou não. O sinal abre para os carros. Embora haja um estirão a percorrer até o ponto sinalizado, o ônibus para bem antes; um outro, para logo atrás e fecha o cruzamento, o meu que vinha abeirando, tira por fora e queima a parada. Dá uma raiva! Que povo é este que atrapalha o trânsito por birra, por opção. E que serviço é este que me deixa acenando em desespero, feito besta, para um ônibus que não está nem aí pra mim? Minha cidade descompensada, descontrolada. Agitação ao fim do dia. A chuva pingando. Os olhos ardem. Lacrimejam. Um olho chora de amor por esta cidade, o outro por causa de uma cólica, de um assombro, ou de um dordolho mesmo

sábado, 8 de abril de 2017

crônica da semana a cura tom cruise

A cura
Tô com um negócio com o Tom Cruise. Sabe uma cisma, uma inesgotável desconfiança? Para mim, em todo e qualquer flagrante, qualquer imagem que seja, captada do ator, maldo logo: não é ele. É um engodo, uma farsa (um disfarce). E tantos e quantos são os blefes e menções, que chego admitir que o Tom Cruise, de vera, de certo mesmo, não existe. O Tom Cruise é só uma máscara vil e traiçoeira.
Tô impressionado, já pensou? Desde que vi umas das edições de “Missão Impossível”, entro em parafuso quando a prosa envolve firmezas ou certezas.
No filme, as cenas deixam a gente abilezadinho. Uma hora o bandido vem com aquela cara de malzão, pronto para meter o bicho no mundo ocidental cristão, mas aí, de repente seus olhos vidram, ele dá um estrebucho, leva as mãos ao rosto, pressiona e engilha a cara, e da face, desloca uma máscara. Aí, a gente descobre aliviado que quem está na ação é o nosso herói, Tom Cruise, nos salvando a todos, e não o bandido. O mocinho, ora veja, tinha confeccionado uma máscara que nem, que nem a feição do meliante. Em outro momento, a confusão é grande. Quem tá com a cara do Tom Cruise é o  bandido e o Tom Cruise, de novo, tá com a cara do bandido, e de novo, a gente nem malda. Coisa de endoidecer. Ainda bem que a cena já é no final do filme e o desassombro vem quando uma máscara é largada ao chão, nosso herói dispara na carreira levando consigo a valiosíssima ampola de belerofonte e salvando a vida de milhões de pessoas.
Então, pelo que torna e pelo que deixa, o que me impressionou mesmo, foi a expressão de pavor na cara do Tom Cruise falso, nos estertores da morte, enquanto o verdadeiro corria para a glória, de posse do belerofonte salvador. Não foi o final feliz, o sorriso congelado, a musiquinha romântica que roubou meu apreço e envolvimento. Foi o semblante sofrido, desesperado. Foi aquela conotação dramática, a comoção dos olhos arregalados, do cenho tensionado, da boca travada. Um grito reprimido de dor que me persegue, que me consome, que me toma de sobressalto à hora mais inesperada, como litisconsorte de uma tragédia de mentirinha, mas chamuscada pelo calor que me queima como febre braba, que me arde quase que de verdade. O rosto do falso galã, agonizando, no frigir dos ovos, é mais verossímil, nas minhas reflexões que o sorriso insosso, fitando o final feliz de um mar azul. Um Tom Cruise cataclísmico, prostrado, de tez engilhada, estilhaçada de conteúdos, destroçada de forma. Uma máscara posta-se ante meu pasmado e silencioso lufar, me intimidando, me confundindo, me desafiando a demascará-la. Mas resisto. Insisto na crença. Embaixo da máscara, não é o Tom Cruise, ora,ora. É um usurpador de caras, caretas, caretinhas.

Não é o fim. A possibilidade de luta me reanima. Nada a temer. Por que temer? Fora, abaixo esse negócio de temer. Temer, não. Temer jamais. Apresento-me para o bom combate e imagino lá na frente, o antídoto, a preciosíssima ampola de belerofonte. O sorrriso verdadeiro do Tom Cruise, o mar azul, a quimera e a cura.

sábado, 1 de abril de 2017

O barranco fértil do rio Acre
A poronga ardia no alto da cabeça e o lume fino e quente o guiava. A terra úmida o prendia, atrasava a rota, atolava a vontade. Consumia o ânimo. Gotejos lembravam a noite perto, o sono querendo mais, o assanhamento com a mulher no leito falhado de pachiúba... e o quentinho do abraço.
Se não completasse a rua de seringa, não haveria olhares carinhosos e nem cumplicidades promissoras. Tinha porque tinha que vencer o lameiro. Nem sei dizer que período era aquele. Se era dia, se era noite, madrugada alta, alvorecer. Para o seringueiro o tempo não é contado em ponteiro de relógio. É medido em aviamentos, em cada palmo trilhado na escuridão, em instantes curtos de carícias, carinhos, prazeres ásperos e prestos. A poronga ardendo, o gotejo, a solidão. Os filhos, a mulher, dormindo em leito de pachiúba falhada. A sina.
A jornada do seringueiro começava cedo e tinha um motivo para isso, mas também, terminava cedo. Em 1992, quando visitei o seringal onde nasci, lá no Xapuri, experimentei a rotina do campo. Na ‘colocação’ ainda havia boa parte da família do meu pai. Tios, primos, os filhos dos filhos dos tios. Passei cinco dias lá, enfurnado. O ritmo é o mesmo, de tantos e tantos anos. O seringueiro sai para a mata, por volta das quatro da manhã. Tem uma meta de árvores pra cortar. As seringueiras são disseminadas na selva, mas tantas existem no Acre, que dá pra organizar traçados de colheita que são conhecidos como ruas. No início da jornada, no caminho de ida, ele vai riscando os troncos e posicionando a tigela, que fica aparando o leite. Nessa hora, a orientação que tem vem da poronga, daquela força vital de homem da floresta e de alguma esperança de vida melhor. Na volta, o clarão do dia já se anuncia. A seiva é coletada e dali, até o sol alto, o seringueiro se dedica ao defumo das bolas (pélas) de borracha. O tempo desmilinguindo, rareando, o dia indo embora. Quando o seringueiro se livra das desobrigas com o patrão, aí é que ele vai pensar na casa, nos filhos, catar o de comer (por isso sai no escuro ainda: para esticar o tempo, para arranjar uma beiradinha do dia em que possa ir atrás de uma caça fácil, um veado mateiro, uma paca gorda; usa o restinho de luz do sol, para chapinhar minhocas, tentar uns peixes, plantar algumas raízes no barranco fértil do rio Acre).
Nem bem anoitece, uma última descida ao igarapé para arear a panela ou para um banho restaurador sela o fim da lida. Um radinho, ainda insiste na pregação do Ângelus, mas o sono vem irresistível.
Fiz essas coisas quando fui ao Acre na tentativa de reviver o tempo perdido de meu pai. Sem certeza ou solidez porque o tempo para ele não se deu ao ritmo dos ponteiros do relógio. Idealizei um seringueiro.
Meu papai morreu aos 38 anos, num 31 de março. Era jovem. Muita árvore tinha pra riscar ainda. Minhas débeis tentativas de reencontrar meu pai, não deram resultado. Não o encontrei nas ruas de seringa. Mas não esmaeci não. Depois daquela viagem ao Acre, alegra-me a certeza de ter meu papaizinho abrigado esses anos todos, no lado esquerdo do peito.