Do outro lado da Bélgica
Por
aqueles dias, o Gabeira já havia voltado do exílio e provocado a
indignação da esquerda revolucionária ao desfilar nas areias de Ipanema
com uma tanga de crochê verde e lilás, inaugurando um novo figurino
ideológico para a sua permanência no Brasil.
Um
arzinho de liberdade deslizava discretamente pelos escaninhos do poder e
o país caminhava para a distensão política antecipada como promessa,
ainda no governo do General Geisel.
Mas a coisa ainda tava pegando.
Sobravam
reminiscências autoritárias, rancores doutrinários, ódios
programáticos...As bombas pipocavam pelas bancas de revistas e
estouravam em shows populares.
Na
época, aqui em Belém, lutávamos pela conquista da meia-passagem e o
nosso comitê da Escola Técnica acompanhava os movimentos com certo zelo,
mas sem medo. Tínhamos um grupo decidido, aplicado.
Havia,
porém, um quê de verde e lilás nas nossas intenções. A revolução, a
derrubada da ditadura era uma missão a ser concluída, Mas a gente dava o
maior valor no nosso happy hour também.
Nesse
tempo de Escola Técnica as coisas aconteciam muito intensamente e muito
rapidamente com a gente. Era a passagem da adolescência para uma fase
mais madura. Despertávamos para o saber e para a liberdade. Íamos para a
luta. Descobríamos os apelos do mundo. E experimentávamos... a água que
passarinho não bebe.
Procurávamos ser independentes. Mas vivíamos sem grana.
O que não era exatamente um problema que impedisse as nossas confraternizações de sexta-feira.
Fazíamos uma caminhada pela Almirante Barroso e parávamos motoristas e pedestres abordando-os
num amistoso pedágio. E olha, que dava certo! Rolava uma grana que dava
pra comprar meia dúzia de garrafas da cachaça coquinho e umas quantas
unhas sebentas de não sei-o-quê recheada com uma farofa que era a pura
anilina que o moleque vendia na calçada da Escola. Pronto. Daí era só
atravessar para a Europa.
À
época o consulado da Bélgica ficava em frente à Escola Técnica. E como a
coisa tava braba aqui do outro lado, a gente atravessava a Estrela, e
fazia o nosso fuzuê sob a garantia do exílio.
E não é que o consulado da Bélgica foi usado, realmente, como refúgio, como salvação por um ativista político da época.
Certa
vez, na chegada para o turno da tarde, o furdunço estava instalado na Estrela. Polícia, imprensa, curiosos...Rua interditada.
Pergunta
daqui, pergunta dali, e a coisa se esclareceu: um militante de esquerda
havia saltado para o consulado da Bélgica (na gíria da esquerda, saltar
significava pedir asilo político em uma embaixada ou consulado, como
neste caso, e em muitas ocasiões representou exatamente o ato: muitos
perseguidos políticos pularam o muro das embaixadas para escapar da
repressão).
O
fato causou surpresa para os movimentos de esquerda. Apesar de alas
radicais dos militares resistirem ao processo de abertura política com
ações violentas como as bombas nas bancas de revistas, a anistia era uma
realidade. Não se tinha notícias de novos exilados. Muito
pelo contrário, muitos deles estavam voltando (o Gabeira ecológico já
se mostrava para o Brasil).
Muito
quiquiqui floresceu para explicar o ato daquele rapaz (e eu não vou
entrar aqui em detalhes, mesmo porque, eles são controversos. Cabe a
história a definição daquele evento). Sei que presenciei um momento
jamais pensado por mim. Sei que vivenciei um fato triste da história.
Sei que acompanhei o desespero em favor do desterro.
E sei que naquele dia não aconteceu o nosso happy hour ali, ao pegado da Bélgica. Houve de ficarmos sóbrios (como era de ser) do lado de cá do Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário