Nota nove e uns caroços
Em
duas oportunidades na vida fui convidado para fazer parte de um corpo de
jurados. As duas em competições de músicas. Pra nunca mais. Não tenho o pendor
de julgar, reconheço.
Noto
ainda que além da frágil, e reiteradamente passional, elaboração de critérios
ou de leituras substanciosas das obras e apresentações, quando calha d’eu ser
justo e qualificar direitinho as intenções, peco nas medições. Me tenho por
demais analítico nas notas. Num concurso, em especial, pus a turma da apuração
em desconfortável encalacre. Minhas notas foram todas quebradinhas, minha
composição decimal tendia ao infinito. Para um, dei 8,347; já para aquela, a
nota foi 7,843. Aquel’outro mereceu 9,769. Não sei qual entidade cartesiana
baixava em mim. As minhas notas tinham valores enes tais além da vírgula, que
se alinhavam à desmesurada configuração do valor de pi. O que se via na hora do
resultado era um nervoso digitar na calculadora dos celulares. Continha chata
que dava recálculo, gerava insegurança. Lá do meu lugar na banca, tomando
aquela aguinha que passarinho não bebe (minha exigência para compor o plantel)
atinava para os olhares de incontida ira dirigidos a mim. Era a escolha de uma
marchinha de carnaval para o um bloco, formado por animados estudantes
universitários e agregados, que acontecia já na concentração e em meio à
pândega própria da época. Tinha um espírito despojado, lúdico, dispensava
perfeitamente aquela sisudez, aquela tensão toda para a obtenção de uma nota (que
poderia contemplar qualquer uma das marchinhas inscritas, afinal, todas
comporiam o repertório do bloco dali por diante). Depois daquele dia, lição
dada, lição apreendida. Não mais me convidaram e eu também, quite que me
enxeri.
Embora
tenha feito a autocrítica. Revisto conceitos. Ativado mecanismos mais ágeis e
compensadores de atenção e compreensão, recaí.
Detalhezinhos
decimais me servem agora para meter o bedelho, me inserir no bloco de avaliadores
mis que grassam emitindo notas e pesos aos vários desafios assumidos por Belém
para a realização da COP30.
Além
da vírgula, embarco na turma que viu a COP como um jogo de futebol ou um show
para multidões. Mando um número quebradinho, mas ali no rumo do 10. É claro que
embalado pelo forte apelo midiático local, pela valorização das nossas riquezas
culturais e ainda em favor da resistência, da resposta que a cidade deu para as
pssicas liminarmente disparadas. Ainda sobre este apanhado, ressalto que uma
nota alta se justifica pelo engajamento da população. Todo o fuzuê em torno da
COP trouxe para a cena também os moradores da região. E isso foi muito
positivo. Tanto para o cidadão conhecer melhor o lugar que mora e se reconhecer
neste espaço (com seus problemas, suas belezas, sua história) como também para
se inserir, se aliar aos movimentos de reflexão, de reivindicação, de
elaboração de propostas e condutas em favor do planeta. À exemplo, na prática,
testemunho que saí deste transe
comunitário decidido a reagir à mentira que vivenciamos com relação à coleta de
lixo. Implementamos, aqui em casa, uma outra estratégia para o descarte de
resíduos gerados, já que a coleta realizada hoje desacredita o sistema, mistura
tudo e inviabiliza o manuseio seguro do material coletado. Diante do entusiasmo
circunstante, as falas que pregam comportamentos sustentáveis foram
amplificadas, tocaram os corações e provocaram mudanças de hábitos em muita
gente, imagino. Baseado nas declarações oficiais, volto ao picadinho dos
números e banco a nota 9 e uns caroços para o conjunto da obra. Pena é que
concretamente, a conferência avançou muito pouco com relação a pautas
decisivas. Transição energética, redução na geração de CO2, compromissos com
biomas foram travados. O nove inteiro, uma excelente nota para o pacote Belém,
foi ressiginificado e confinado sob gases estufa. Ficando a salvação do planeta,
com os caroços decimais.