sábado, 6 de setembro de 2025

crônica da semana

Olhos graúdos

Aquela manhã cedo, bem cedinho mesmo, em frente à DRT da Gaspar Viana, me volta à memória sem que eu tenha que despender muito esforço. Porque, pelo certo, foi de grande impacto. Mamãe me botou da rede ainda no escuro das cinco e poucos. O custo foi nos aviarmos na higiene matinal e corrermos para parada pra pegar o primeiro ônibus. Tínhamos que nos adiantar, as senhas na DRT eram poucas. Eu ia tirar minha primeira carteira profissional, a mesma que levei no ano passado para dar uma baixa simbólica, quando me aposentei, depois de contados 49 anos além do dia em que madrugamos naquela fila.

Não pegamos a senha. Esses serviços, a gente sabe. Por mais que a gente chegue cedo, tem gente que chega mais cedo e quando dá a nossa vez, não tem mais vaga e a gente sobra.

Não podia ficar sem aquela carteira. Era da parte do urgente. Uma oportunidade no supermercado estava me esperando. Tudo certo. Eu até já faturava uma grana de gorjeta, nos finais de semana, trabalhando como encostado, de empacotador, ou como se usava dizer naquele tempo, boy, na loja de confronte ao Baenão. Mamãe não desistiu. Esses serviços, a gente nunca pode dar como perdidos. Sempre tem um jeitinho. Tem sempre um despachante que desenrola o enrolado. Logo apareceu um oferecendo os préstimos, dizendo que a partir de uma módica contribuição, colocaria a gente pra dentro na certa. Mamãe parece que estava adivinhando, levou um dinheirinho pro café e um extra para as precisões. Calhou. O homem pegou o agrado, meus documentos e sumiu lá pra dentro. Demorou. Apesar do cafezinho com pão e manteiga com o tempero de calçada movimentada da Primeiro de Março, quando ele apareceu de novo, já na batida da campa da DRT, eu já estava azul de fome. Pediu que a gente fosse atrás dele. Entramos no prédio com a chancela daquele esperto domador das barreiras burocráticas. Fui direto para a foto. Estava com uma camisa de botão, de gola rija, de tecido barato com estampas discretas. A foto foi em preto e branco. Ajustaram a placa no meu peito com a data da emissão da carteira e dispararam o flash. Não sei se pela urgência de querer ser um rapazinho, sendo uma criança ainda, ou se, ansioso para pegar meu documento para trabalhar logo como contratado, sai foi mais zoiúdo que o graúdo traço genético dos sodreres na foto. Ou era mesmo a fome, pelo adiantado do meio-dia esbugalhando meu olhar.

Tinha 12 anos. Regime militar, sem bolsa nenhuma, sem programas sociais de auxílio aos pobres, sem futuro. Tinha mesmo que lutar pela vida. Dias depois, no ano da graça de 1975, assinava pela primeira vez minha carteira de trabalho.

Agora, pelo início de setembro, completei um ano de aposentado. Pensei que não, mas rola um filme na cabeça. Vem a cena desse começo meio atropelado na fila da DRT em 1975, o jeitinho que o interessado despachante deu para me pôr para dentro do mercado de trabalho e minas outras lembranças. Pipocam aqui, ali no cocuruto fatos, eventos, umas saudades. Ferinas frustrações ressurgem. O arrependimento por não ter cuidado da saúde o tanto que ela merece esses anos todos faz menção de me atormentar, mas dou o desdobro e tento recuperar o tempo perdido. É aquilo, em nome do trabalho a gente larga de mão valores outros como cuidar do corpo, da mente, da família, dos amigos. Vai deixando pra depois. Hoje vivo, com ônus, o depois.

Avalio a decisão de parar como positiva. Na conta, deu tudo pelo certo. Também, né, manos e manas, trampando 49 anos direto, tenho a merecendência do ócio e de fazer da minha cabeça um glacial ambiente de paz, a dita cabeça de gelo.

Fosse tirar uma foto hoje arremedando ser um rapazinho, procuraria uma camisa de botão séria, com golas engomadas. No retrato, por certo, meus olhos brilhariam mais serenos, amiudados e calmos. Descansados. Sem o azul da fome ou a ‘ânsia da vida por si mesma’, urgente e perturbadora, me pinicando a mente.