Olhos graúdos
Aquela
manhã cedo, bem cedinho mesmo, em frente à DRT da Gaspar Viana, me volta à
memória sem que eu tenha que despender muito esforço. Porque, pelo certo, foi
de grande impacto. Mamãe me botou da rede ainda no escuro das cinco e poucos. O
custo foi nos aviarmos na higiene matinal e corrermos para parada pra pegar o
primeiro ônibus. Tínhamos que nos adiantar, as senhas na DRT eram poucas. Eu ia
tirar minha primeira carteira profissional, a mesma que levei no ano passado
para dar uma baixa simbólica, quando me aposentei, depois de contados 49 anos
além do dia em que madrugamos naquela fila.
Não
pegamos a senha. Esses serviços, a gente sabe. Por mais que a gente chegue
cedo, tem gente que chega mais cedo e quando dá a nossa vez, não tem mais vaga
e a gente sobra.
Não
podia ficar sem aquela carteira. Era da parte do urgente. Uma oportunidade no
supermercado estava me esperando. Tudo certo. Eu até já faturava uma grana de
gorjeta, nos finais de semana, trabalhando como encostado, de empacotador, ou
como se usava dizer naquele tempo, boy, na loja de confronte ao Baenão. Mamãe
não desistiu. Esses serviços, a gente nunca pode dar como perdidos. Sempre tem
um jeitinho. Tem sempre um despachante que desenrola o enrolado. Logo apareceu
um oferecendo os préstimos, dizendo que a partir de uma módica contribuição,
colocaria a gente pra dentro na certa. Mamãe parece que estava adivinhando,
levou um dinheirinho pro café e um extra para as precisões. Calhou. O homem
pegou o agrado, meus documentos e sumiu lá pra dentro. Demorou. Apesar do
cafezinho com pão e manteiga com o tempero de calçada movimentada da Primeiro
de Março, quando ele apareceu de novo, já na batida da campa da DRT, eu já
estava azul de fome. Pediu que a gente fosse atrás dele. Entramos no prédio com
a chancela daquele esperto domador das barreiras burocráticas. Fui direto para
a foto. Estava com uma camisa de botão, de gola rija, de tecido barato com
estampas discretas. A foto foi em preto e branco. Ajustaram a placa no meu
peito com a data da emissão da carteira e dispararam o flash. Não sei se pela
urgência de querer ser um rapazinho, sendo uma criança ainda, ou se, ansioso
para pegar meu documento para trabalhar logo como contratado, sai foi mais zoiúdo
que o graúdo traço genético dos sodreres na foto. Ou era mesmo a fome, pelo adiantado
do meio-dia esbugalhando meu olhar.
Tinha
12 anos. Regime militar, sem bolsa nenhuma, sem programas sociais de auxílio
aos pobres, sem futuro. Tinha mesmo que lutar pela vida. Dias depois, no ano da
graça de 1975, assinava pela primeira vez minha carteira de trabalho.
Agora,
pelo início de setembro, completei um ano de aposentado. Pensei que não, mas
rola um filme na cabeça. Vem a cena desse começo meio atropelado na fila da DRT
em 1975, o jeitinho que o interessado despachante deu para me pôr para dentro
do mercado de trabalho e minas outras lembranças. Pipocam aqui, ali no cocuruto
fatos, eventos, umas saudades. Ferinas frustrações ressurgem. O arrependimento
por não ter cuidado da saúde o tanto que ela merece esses anos todos faz menção
de me atormentar, mas dou o desdobro e tento recuperar o tempo perdido. É
aquilo, em nome do trabalho a gente larga de mão valores outros como cuidar do
corpo, da mente, da família, dos amigos. Vai deixando pra depois. Hoje vivo,
com ônus, o depois.
Avalio
a decisão de parar como positiva. Na conta, deu tudo pelo certo. Também, né,
manos e manas, trampando 49 anos direto, tenho a merecendência do ócio e de
fazer da minha cabeça um glacial ambiente de paz, a dita cabeça de gelo.
Fosse
tirar uma foto hoje arremedando ser um rapazinho, procuraria uma camisa de
botão séria, com golas engomadas. No retrato, por certo, meus olhos brilhariam
mais serenos, amiudados e calmos. Descansados. Sem o azul da fome ou a ‘ânsia
da vida por si mesma’, urgente e perturbadora, me pinicando a mente.