sábado, 27 de setembro de 2025

crônica da semana - escrito nas estrelas

 Escrito nas estrelas

Aqui, ali, vejo uma notícia contando que um corpo celeste se desloca em velocidade jamais detectada antes, pelo espaço próximo, em direção a Terra. Já vi publicação que projeta a trajetória dar certinho aqui pelos arredores do Brasil. Consta também que um especialista até se arvorou interpretar o objeto como sendo uma nave alienígena. Aí, parei-te! Fiquei na cisma. Extraterrestres se assanhando nas redondezas? Me deu foi medo. Será que chegou o momento do contato imediato, há séculos esperado?

Quando foi detectado pelos potentes telescópios, o viajante estelar chamou a atenção por vários detalhes incomuns aos objetos registrados até hoje. O rumo que o bicho desenvolve, por exemplo, aponta que ele vem de longe pacas, além dos limites do sistema solar e faz um caminho diferente de outros corpos errantes como os cometas. Faz um percurso externo, ou seja, diferente dos cometas, não forma um estirão harmonizado com os destinos espaciais subordinados à vizinhança do sol, ao contrário, se estende em rota aberta, dita hiperbólica que, se relacionada à escala, pode ser entendida como um destino certo: a Terra. Meu Deus! O que acontecerá nos próximos episódios?

Quando essas especulações ganham força, me vem à cabeça, a finalidade dessas visitas siderais. Por que vêm se abalar até aqui? O que querem? Penso logo que têm motivação nas pirâmides e outras maravilhas. Há quem acredite que é coisa deles, dos seres espaciais, as grandes criações da humanidade, que o homem não tinha condições de operar aquelas obras manejando pedras enormes, criando desenhos arrojados; que a mente humana nem sabia fazer conta de seno pra dar o prumo e o piso direitinho das grandes edificações, naqueles tempos. Pode ser, pode ser. E agora o calendário solar de Machu Picchu, os Moares do Pacífico, as linhas de Nazca? Caso aportem mesmo nas cercanias do Brasil, viriam reivindicar créditos de concepção, propriedade e também de usufruto das belezas e das artes do Rio de Janeiro, dos infindáveis, belos e bravios mares de nossa terra natal? Do nosso Carimbó? Só sei que, se vierem cobrar a conta de tantas franquias, que segundo opiniões sem provas, assumimos deles, estaremos fragilizados, expostos a impraticáveis tarifaços cósmicos. Vamos nos ter e haver com o novo e o velho, é que é, sugados pelo espírito usurário e alinhavados pela dominadora tessitura imperialista. Sob pena de sanções, suspensão de vistos para viagens galácticas e bombas no qual pega no lombo da gente.

Se não tiver jeito de desviar a rota e nos deixarem pra trás, bora fazer figa pra serem do bem, pra chegarem aqui na boa, com a seletora travada no modo paz e amor, e com aquela intenção universal de ajudar, ajustar o que está em desacordo, pacificar as incontornáveis arengas, e, quem sabe levar ao além das quatro linhas etéreas, para uma temporada de joelhos no milho celeste, as gentes de comportamento mau, os disseminadores de guerras e cizânias, aquela parcela da espécie que é domada pelo ódio e que aprecia a franca mentirinha.

É de se considerar que esta história do objeto ser uma espaçonave vinda do horizonte do sistema está pautada numa regrinha de probabilidade que precisa ser provada a partir de uma pá de evidências. Tem tudo pra não ser, e me parece que o próprio cientista que sugeriu esta hipótese abandonou a idéia. Ainda bem. Já estava num pé e n’outro.

O que já está definido é que se trata de um cometa, por nome 3I/Atlas. Diferentão, sim. Um pretenso bólido gelado que, de certo, vai cruzar o sistema solar cheio de estilo, dar um trisca na órbita de Marte e nem vai nos dar o ar da graça. Só poderá ser visto pelas lentes de poderosos telescópios. Tem sua importância porque, como vem dos escondidos do universo, através de análises detalhadas de seu comportamento físico e químico, pode nos revelar muito do que está escrito nas estrelas.

 

sábado, 20 de setembro de 2025

crônica da semana - presente padrão - mineração

 Presente Padrão

Pra gente ver né, como tudo concorre. Juro que nem maldei, não liguei lé com cré ou fé com pé. Foi coincidência. O fato se deu exatamente no período em que o curso de Mineração da Escola Técnica comemora 50 anos de criação, (perdão, hoje é IFPA, mas não desatarracho da notação que fez a minha vida mudar de rumo: ETFPA)

Calhou que antes de sair para um happy hour no sábado passado, lembrei que minha anfitriã tinha mudado de idade dia desses e mais que depressa me aviei no presente. Mimo no padrão. Com a minha marca. É batata. Ou dou um livro, ou uma pedra. Catei lá nas minhas preciosidades um fragmento de rocha (que é o nome apropriado para designar a peça, e não pedra) dos mais simbólicos que tenho no meu acervo (minha amiga Paty merece e muito uma prenda plena de significados). Abriguei numa embalagem de presente e, sob protestos da família (aqui em casa ninguém acha que uma pessoa vai se engraçar por ganhar uma pedra, ou um fragmento de rocha, que seja), mantive a opinião. Deu foi bom. Na hora que entreguei a lembrancinha, fiz um arrazoado técnico, histórico e sentimental. Minha amiga se disse encantada, ainda mais quando mostrei que se lançada a luz da lanterna sobre o grãozinho, tudo nele brilha com aquela idiossincrasia doce do açúcar.

Depois, contextualizando, vi que poderia argumentar o presente como fazendo parte do clima pela criação do meu curso. Afinal, foi lá que aprendi a dar valor aos elementos minerais e, nos adiantes da vida tento partilhar, nos limites, esta admiração por esses componentes naturais tão surpreendentes e reincidentemente belos.

Sou da turma de 1979. Só aí são 46 anos do curso. A minha turma foi uma das primeiras a se formar. Sei disso porque, por ser uma novidade na oferta de cursos à época, este detalhe pesou para a minha escolha.

Fiz opção pela Escola Técnica muito pelas dicas de nossa vizinha de parede-meia na Vila Mauriti. Tinha dois filhos estudando lá. E eles traziam as novidades. Falavam de um curso novo bem aceito pelas empresas da região. Todos os alunos que conheciam de Mineração já tinham estágio ou emprego garantido. A possibilidade de trabalho logo de prima era um atraente imbatível. Nem dei muita trela pros requisitos quando fui fazer a inscrição no curso (que diziam que o candidato, além de ser bom na matemática e ciências afins, deveria ter disponibilidade para viajar, viver em áreas inóspitas, ter boa resistência física, adaptação a trabalhos noturnos; estar sujeito a doenças endêmicas, administrar equipes no campo, além de outros desafios). Foram 7 semestres de uma vivência substanciosa.

Na minha vez, o curso já tinha seus 4 anos de funcionamento. Havia uma estrutura, um quadro de professores aplicados, e um esforço para que o recurso satisfizesse as necessidades de aprendizado. Não era fácil. Necessitávamos de equipamentos, instrumentos, viagens de campo. Percorremos o caminho até a formatura travando lutas contínuas por melhorias. No entanto, do que tínhamos, aproveitamos bem. Quando entrei pela primeira vez no nosso laboratório, fiquei maravilhado. (Por aqueles dias ainda se podia chamar de pedra). Tanta pedra bonita! Cristais, rochas de tudo quanto é jeito, um elenco notável de fósseis. Os microscópios que aumentavam a beleza dos testemunhos, as fórmulas e as reações químicas dos minerais, o uso do ácido, das lupas, da unha... nossos desenhos, a maneira como pensávamos a Terra e seus segredos... Era tudo novidade e sedução. Houve um tempo, já trabalhando na área que, toda vez que vinha a Belém, passava pela Escola e deixava uma amostra para o acervo do laboratório. Até um topázio imperial lindão eu doei pra Escola. Talvez seja essa a natureza deste meu baque de sempre dar de presente um mineral, uma rocha de traços autênticos. Talvez seja para ratificar a importância que o curso de Mineração teve pra mim. Pôs até hoje, o di cumê na minha mesa.



sábado, 13 de setembro de 2025

crônica da semana - falando sozinho

 Falando sozinho

Há situações que nos pegam sem jeito. Nos atravessam no repente e nos impõem reações inesperadas.

Como aquela na saída do aeroporto de Belém quando tentei ajudar um camarada de tudo quanto é jeito, atrapalhado. Estava voltando pra casa depois de me despedir de um amigo. No caminho para o ponto de ônibus, o pequeno até aqui de malas passou por mim e pediu que eu o ajudasse. Mas não parou, continuou caminhando apressadamente. Aí veio a minha reação meio sem razão. Saí atrás dele tentando de toda forma dar um auxílio, que se reduziu à operação inócua de andar com a mesma pressa que ele. Até tentei dar um apoio, amparando com as duas mãos, a valise que ele lançara sobre as costas, mas ele ia tão rápido que me delegava apenas a menção, minhas mãos como se rogasse por algo, vagaram abandonadas ao vazio. Até que desisti. Ele, feito uma mula comboieira ladeada de caçuás, se adiantou ligeiro. Eu fiquei pra trás tentando entender aquela situação. Passou, inclusive, da parada do Perpétuo Socorro e sumiu ali pras bandas da rodovia Snap. Não teve resultado aquele arremedo de comunicação. Um pedido de ajuda, vindo de um estranho, muito estranho, que não era dado a ajudas.

Por agora, me vi em outro desafio para administrar minha atenção. Com resultado mais aquele, na comunicação. Trancei, por um tempo, uma prosa elaborada, profunda, rica em informações, com um cidadão. De costas.

Estava na caminhada matinal numa rua da Tijuca, no Rio, que tem uma pedra enorme no meio do caminho. A gente aqui de Belém, ou mesmo dessa região de planície não está acostumado com essas expressões de relevo, daí que faço questão de passar por ali e admirar aquele bloco rijo, pomposo, se elevando no meio do nosso trajeto.

Eis que ouço alguém atrás de mim, em brados fartos, coordenados e insistentes. Como só eu caminhava na calçada, estava era se dirigindo a mim. Caramba, exclamei apreensivo, maldando ser um desses destrambelhados que pelo comum encontramos na rua pedindo golpe, intervenção militar, procurando papo de anistia para conjuradores. Virei o olhar para avaliar a companhia, as menções e intenções. Tinha mesmo o baque do cidadão de bem do zap. Bochechas coradas, salpicadas de barba cerimoniosamente doirada, passadas marciais, traje do tipo despojado-caro. Rapidola volvi ao caminho e mantive uma distância de segurança entre nós. Tinha uma voz potente e que me revelou umas frases organizadas e compreensíveis. E ora, ora. Tá vendo como a gente não pode maldar. Não tinha dolo. Só queria partilhar a mesma admiração pela rocha que se expunha ali na avenida. E, me localizando no adiantado, alterava o tom para me informar que aquela pedra tinha mais de sessenta milhões de anos. Quando captei a mensagem, interagi. Mesmo seguindo meu caminho, virei o rosto e de través, admiti que poderia ser bem mais, a Geologia da região datava para mais distante no tempo mesmo. Emendou pedindo que eu prestasse atenção lá ao longe, ao corcovado e acrescentou ter lido em algum lugar que a pedra do Cristo tem mais de 500 milhões de anos. A seguir, filosofou. “E a gente acha que viveu muito. O homem se considera o dono da Terra. Não é nada diante das maravilhas eternas da natureza”. Taí, aquele senhorzinho com jeito de militar aposentado estava me saindo melhor que a encomenda. Ainda de costas, dei linha reforçando que em termos de ocupação da Terra, o homem perde feio para a samambaia. Lembrei Carl Sagan quando afirma que pela idade da Terra, se comparada a um ano, o homem moderno só apareceria nos últimos minutos do dia 31 de dezembro. Animei com a companhia da caminhada e ainda de costas, para ilustrar a vastidão do tempo, iniciei aquela lenda do passarinho que a cada mil anos vinha afiar o bico numa rocha. Mas antes que eu concluísse a história com a abstração da eternidade, olhei para trás e o homem não estava mais. Foi aí que me peguei falando sozinho.

sábado, 6 de setembro de 2025

crônica da semana

Olhos graúdos

Aquela manhã cedo, bem cedinho mesmo, em frente à DRT da Gaspar Viana, me volta à memória sem que eu tenha que despender muito esforço. Porque, pelo certo, foi de grande impacto. Mamãe me botou da rede ainda no escuro das cinco e poucos. O custo foi nos aviarmos na higiene matinal e corrermos para parada pra pegar o primeiro ônibus. Tínhamos que nos adiantar, as senhas na DRT eram poucas. Eu ia tirar minha primeira carteira profissional, a mesma que levei no ano passado para dar uma baixa simbólica, quando me aposentei, depois de contados 49 anos além do dia em que madrugamos naquela fila.

Não pegamos a senha. Esses serviços, a gente sabe. Por mais que a gente chegue cedo, tem gente que chega mais cedo e quando dá a nossa vez, não tem mais vaga e a gente sobra.

Não podia ficar sem aquela carteira. Era da parte do urgente. Uma oportunidade no supermercado estava me esperando. Tudo certo. Eu até já faturava uma grana de gorjeta, nos finais de semana, trabalhando como encostado, de empacotador, ou como se usava dizer naquele tempo, boy, na loja de confronte ao Baenão. Mamãe não desistiu. Esses serviços, a gente nunca pode dar como perdidos. Sempre tem um jeitinho. Tem sempre um despachante que desenrola o enrolado. Logo apareceu um oferecendo os préstimos, dizendo que a partir de uma módica contribuição, colocaria a gente pra dentro na certa. Mamãe parece que estava adivinhando, levou um dinheirinho pro café e um extra para as precisões. Calhou. O homem pegou o agrado, meus documentos e sumiu lá pra dentro. Demorou. Apesar do cafezinho com pão e manteiga com o tempero de calçada movimentada da Primeiro de Março, quando ele apareceu de novo, já na batida da campa da DRT, eu já estava azul de fome. Pediu que a gente fosse atrás dele. Entramos no prédio com a chancela daquele esperto domador das barreiras burocráticas. Fui direto para a foto. Estava com uma camisa de botão, de gola rija, de tecido barato com estampas discretas. A foto foi em preto e branco. Ajustaram a placa no meu peito com a data da emissão da carteira e dispararam o flash. Não sei se pela urgência de querer ser um rapazinho, sendo uma criança ainda, ou se, ansioso para pegar meu documento para trabalhar logo como contratado, sai foi mais zoiúdo que o graúdo traço genético dos sodreres na foto. Ou era mesmo a fome, pelo adiantado do meio-dia esbugalhando meu olhar.

Tinha 12 anos. Regime militar, sem bolsa nenhuma, sem programas sociais de auxílio aos pobres, sem futuro. Tinha mesmo que lutar pela vida. Dias depois, no ano da graça de 1975, assinava pela primeira vez minha carteira de trabalho.

Agora, pelo início de setembro, completei um ano de aposentado. Pensei que não, mas rola um filme na cabeça. Vem a cena desse começo meio atropelado na fila da DRT em 1975, o jeitinho que o interessado despachante deu para me pôr para dentro do mercado de trabalho e minas outras lembranças. Pipocam aqui, ali no cocuruto fatos, eventos, umas saudades. Ferinas frustrações ressurgem. O arrependimento por não ter cuidado da saúde o tanto que ela merece esses anos todos faz menção de me atormentar, mas dou o desdobro e tento recuperar o tempo perdido. É aquilo, em nome do trabalho a gente larga de mão valores outros como cuidar do corpo, da mente, da família, dos amigos. Vai deixando pra depois. Hoje vivo, com ônus, o depois.

Avalio a decisão de parar como positiva. Na conta, deu tudo pelo certo. Também, né, manos e manas, trampando 49 anos direto, tenho a merecendência do ócio e de fazer da minha cabeça um glacial ambiente de paz, a dita cabeça de gelo.

Fosse tirar uma foto hoje arremedando ser um rapazinho, procuraria uma camisa de botão séria, com golas engomadas. No retrato, por certo, meus olhos brilhariam mais serenos, amiudados e calmos. Descansados. Sem o azul da fome ou a ‘ânsia da vida por si mesma’, urgente e perturbadora, me pinicando a mente.