Pois bem
Eu
só ouço é os gabaritados nisso e naquilo das opiniões em farto conversio
atravessado sobre a Amazônia e, aqui, ali, disparando aquele lero besuntado de
humanismo lembrando que além da floresta e da diversidade biológica, na
Amazônia tem gente. O povo da mata, o habitante do ermo.
Presto
reparo neste discurso e procuro sempre identificar a origem. De onde vem,
explica muito do que realmente, certas pessoas pensam sobre as gentes da
floresta. Sei bem de algumas intenções que usam das simpatias (ou das
promessas), para mais adiante, dar aquela famosa rasteira e tirar de cena as
pessoas, aquelas das quais nada sabem de vivências ou de sonhos.
Nem
sou especialista nem nada, seria um homem afortunado se dominasse efeitos e
causas comportamentais e sociais do nativo, do ribeirinho. Mas dou meu pitaco a
partir de oportunidades experimentadas assim, de palmo em cima. Muitas. Em
destaque aquelas vividas no Xingu.
Foi
o tempo da minha vida profissional que mais me aproximei dos trabalhadores e
muitos, a grande maioria, daquela região do baixo Xingu. Ficávamos acampados
direto e por muito tempo, a cada jornada. Dividíamos a mesa das refeições, as
horas de trabalho e de lazer; partilhávamos da precariedade dos barracos
improvisados, cobertos de lona, na mata; arengávamos no limite, nas várias
mesas de jogos formadas, após o jantar, em partidas nervosas de dominó,
baralho, porrinha, sob a luz dos candeeiros e o zunido das carapanãs.
Respeitávamos a hora e a vez de cada um, quando do uso da retrete. Houve época de
ter no meu acampamento, mais de 30 pessoas. Riqueza de gente pra prestar
atenção, pra descobrir detalhes, sentimentos, potenciais e razões de viver.
Tínhamos
várias equipes que atuavam de forma independente. Eu tinha a minha e era com
essa turma que me permitia mais intimidade. Todos dali. Tinha ribeirinho do
baixo, das bandas do Sousel e Vitória; Uns quantos do meio, dos bairros da
periferia de Altamira, principalmente, do bairro da Brasília. Havia também os
lá de cima. Eram os remanescentes dos castanheiros, gateiros, dos regatões.
Desciam do Riozinho do Anfrísio, do Iriri, dos remansos da pedra do Ó, para
batalhar na firma.
Convivendo,
tecendo prosa, deu para reconhecer algumas essências, propriedades e naturezas
do ser da floresta. E até condensar em traço único, estas particularidades, no
Bené. Para mim, quando se fala em gente da floresta, posso na boa, explorar as
qualidades que encontrei no Bené.
Ali,
no meio da equipe, embora demonstrasse uma atenção, valor real às interações e
tarefas, aquelas eram expressões físicas, do corpo, dos sentidos. Na verdade,
Bené flutuava acima de nós. A matéria estava ali, mas a alma, a energia dele,
se largava pela mata. E tanto, que muitas vezes, após uma discussão ou conversa
vaga que seja da equipe, mesmo que elaborada, quando demandado para uma
opinião, respondia com um reticente ‘pois bem...’ como se minimizasse o enredo
e priorizasse a velocidade dos ventos, um ou outro ruído ao longe, o canto de
um pássaro desconhecido, o barulho da cachoeira lá bem longe. A cada intervalo
das tarefas, saía da picada e quando voltava, trazia um coquinho, uma fruta
doce e caudalosa, uma fava, um cipó fatiado jorrando água, um palmito ainda com
a herança da casca espinhenta. Encontrava na mata tudo que lhe apetecia, de
luxo ou de precisão, tudo que a gente não encontrava. Parece que marcava
encontro, que tinha tudo mapeado.
Quando
ouço discursos traiçoeiros de preocupação com o ser amazônico, creio com a
intenção de sequestrá-lo para o mundo das ambições, penso no Bené. Ele era
parte da terra, do solo úmido, das águas livres, do vento moleque. Jamais seria
seqüestrado, e se o fosse, dispararia um ‘pois bem’ revestido em desdém e casca
espinhenta, sairia da picada e tornaria ao que lhe apetece na floresta, nas
vezes da vivência e dos sonhos.
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