sábado, 5 de julho de 2025

crônica da semana - Bené, pois bem

 Pois bem

Eu só ouço é os gabaritados nisso e naquilo das opiniões em farto conversio atravessado sobre a Amazônia e, aqui, ali, disparando aquele lero besuntado de humanismo lembrando que além da floresta e da diversidade biológica, na Amazônia tem gente. O povo da mata, o habitante do ermo.

Presto reparo neste discurso e procuro sempre identificar a origem. De onde vem, explica muito do que realmente, certas pessoas pensam sobre as gentes da floresta. Sei bem de algumas intenções que usam das simpatias (ou das promessas), para mais adiante, dar aquela famosa rasteira e tirar de cena as pessoas, aquelas das quais nada sabem de vivências ou de sonhos.

Nem sou especialista nem nada, seria um homem afortunado se dominasse efeitos e causas comportamentais e sociais do nativo, do ribeirinho. Mas dou meu pitaco a partir de oportunidades experimentadas assim, de palmo em cima. Muitas. Em destaque aquelas vividas no Xingu.

Foi o tempo da minha vida profissional que mais me aproximei dos trabalhadores e muitos, a grande maioria, daquela região do baixo Xingu. Ficávamos acampados direto e por muito tempo, a cada jornada. Dividíamos a mesa das refeições, as horas de trabalho e de lazer; partilhávamos da precariedade dos barracos improvisados, cobertos de lona, na mata; arengávamos no limite, nas várias mesas de jogos formadas, após o jantar, em partidas nervosas de dominó, baralho, porrinha, sob a luz dos candeeiros e o zunido das carapanãs. Respeitávamos a hora e a vez de cada um, quando do uso da retrete. Houve época de ter no meu acampamento, mais de 30 pessoas. Riqueza de gente pra prestar atenção, pra descobrir detalhes, sentimentos, potenciais e razões de viver.

Tínhamos várias equipes que atuavam de forma independente. Eu tinha a minha e era com essa turma que me permitia mais intimidade. Todos dali. Tinha ribeirinho do baixo, das bandas do Sousel e Vitória; Uns quantos do meio, dos bairros da periferia de Altamira, principalmente, do bairro da Brasília. Havia também os lá de cima. Eram os remanescentes dos castanheiros, gateiros, dos regatões. Desciam do Riozinho do Anfrísio, do Iriri, dos remansos da pedra do Ó, para batalhar na firma.

Convivendo, tecendo prosa, deu para reconhecer algumas essências, propriedades e naturezas do ser da floresta. E até condensar em traço único, estas particularidades, no Bené. Para mim, quando se fala em gente da floresta, posso na boa, explorar as qualidades que encontrei no Bené.

Ali, no meio da equipe, embora demonstrasse uma atenção, valor real às interações e tarefas, aquelas eram expressões físicas, do corpo, dos sentidos. Na verdade, Bené flutuava acima de nós. A matéria estava ali, mas a alma, a energia dele, se largava pela mata. E tanto, que muitas vezes, após uma discussão ou conversa vaga que seja da equipe, mesmo que elaborada, quando demandado para uma opinião, respondia com um reticente ‘pois bem...’ como se minimizasse o enredo e priorizasse a velocidade dos ventos, um ou outro ruído ao longe, o canto de um pássaro desconhecido, o barulho da cachoeira lá bem longe. A cada intervalo das tarefas, saía da picada e quando voltava, trazia um coquinho, uma fruta doce e caudalosa, uma fava, um cipó fatiado jorrando água, um palmito ainda com a herança da casca espinhenta. Encontrava na mata tudo que lhe apetecia, de luxo ou de precisão, tudo que a gente não encontrava. Parece que marcava encontro, que tinha tudo mapeado.

Quando ouço discursos traiçoeiros de preocupação com o ser amazônico, creio com a intenção de sequestrá-lo para o mundo das ambições, penso no Bené. Ele era parte da terra, do solo úmido, das águas livres, do vento moleque. Jamais seria seqüestrado, e se o fosse, dispararia um ‘pois bem’ revestido em desdém e casca espinhenta, sairia da picada e tornaria ao que lhe apetece na floresta, nas vezes da vivência e dos sonhos.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário