sábado, 15 de junho de 2024

crônica da semana - deixa no sílvio

 Deixa no Sílvio

“O único prazer que tenho na vida é ver o Sílvio, aí tu vem  mudar de canal!”

Aquela bronca, dada com sinceridade, vinda sem reservas das residuais reservas de dignidade. A exposição doída de uma vida marcada pela sensaboria dos dias atingiu em cheio a minha soberba, a minha intolerância, os meus pueris conceitos regenciais de família. E também aquela confissão crua, envolvida em humilhação e desprezo redefiniu minhas posturas e costuraram meus arrependimentos eternos. A partir daquele dia me envolvi, com reincidentes insucessos, em intenções de alcançar tolerâncias e ponderações. Amparadas por contextualizações, análises racionais de comportamento e rebatimentos das interações sociais. Não dava pra ser tão radical. Afinal de contas, estava tratando com mãe. E mãe, a gente sabe, é visionária, profética. Prevê que a polarização, o extremismo representam um mal, um nó difícil de desatar.

Então, pra quê aquela repressão, se uma tarde de domingo ligada no Sílvio, ela sabia, não mudava em nada a nossa relação com o mundo, com a nossa luta diária para pôr o cumê na mesa, e os malabarismos rotineiros para garantir nossa sobrevivência? Não era aquela diversão pastelão que nos tiraria do rumo. Eu não entendia, mas entendi que, com a lucidez, com o discernimento que minha mãe tinha sobre nossa realidade, de maneira alguma, a programação do domingo significava um risco.

Muito claro isso e tão minimamente explicável que, até hoje me condeno, sofro por aquela postura autoritária, senhorial de único filho homem metidão, cheio de corda engendrada pelos hermetismos cristãos. Definidor de gostos, costumes e, dizque, salvador do mundo.

E foi uma luta incessante contra a idiossincrasia febril. Por vezes, inglória, de débeis resultados. Do meio pro fim, quando me vi caminhando para uma horizontalização, para um alinhamento negociado para as questões mais imediatas das nossas realizações sociais, me vem este golpe direitista, com o qual nos debatemos nos últimos tempos.

Lá atrás, operei constrangimentos na família, animado pela minha aceitação cega às recomendações da Igreja. Ao conservadorismo e à moralidade piedosa. Era militante. Aninhado no leito dos credos tradicionais e, no contrapé, à Teologia da Libertação. Levava pra casa as contradições, o fanatismo, e além da oração, a ânsia pela revolução... Pelo levante dos pobres.

Pressionava a família. Mamãe, ligada no Sílvio e olhando na frente, alertava: “olha lá, menino”.

Mais tarde, atuando como dirigente sindical, me imaginei com algum poder revolucionário. Radicalizei. Ou era isso ou não era. Fiquei de cara com metralhadora, participei de greves de fome, fiz e aconteci com microfone na mão, em discursos inflamados para a categoria. Sofri perseguições, penei pacas. Doutor Geraldo, nosso advogado, grande mestre, e um craque na arte da negociação, era como mamãe: “olha lá menino!. Precisamos ver lá na frente”.

Foi um custo para mim, aceitar os caminhos da negociação, das ponderações. Dos desapegos. Com o tempo, estava apascentado e ligado nos limites, nos passos que a perna pode dar. Entendi que facilitar o entendimento era tornar o mundo possível, tolerante e com vias abertas. Era como não mudar o canal da TV em que mamãe assistia ao Sílvio. Uma decisão, um caminho difícil de trilhar, mas como dizia a mamãe, para quem tem poucos prazeres, poucas aspirações, na vida, temos que ir conquistando os domingos. Deixa no Sílvio.

Aí teve um dia quando mamãe, que nunca chamava nome, em meio a um encalacre, soltou um poderoso palavrão deste tamanho. Depois, veio este tempo em que o mundo deu uma guinada ao hemisfério sórdido da ofensa rasa, da incompreensão, do desrespeito, do golpe, das fake news, da privatização das praias, da bancada da bala, do estupro... E isso não tem graça nenhuma, não é um pastelão.

Alguém veio e mudou de canal. E aí, o quê... devo entornar.

 

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