Deixa no Sílvio
“O
único prazer que tenho na vida é ver o Sílvio, aí tu vem mudar de canal!”
Aquela
bronca, dada com sinceridade, vinda sem reservas das residuais reservas de
dignidade. A exposição doída de uma vida marcada pela sensaboria dos dias atingiu
em cheio a minha soberba, a minha intolerância, os meus pueris conceitos
regenciais de família. E também aquela confissão crua, envolvida em humilhação
e desprezo redefiniu minhas posturas e costuraram meus arrependimentos eternos.
A partir daquele dia me envolvi, com reincidentes insucessos, em intenções de
alcançar tolerâncias e ponderações. Amparadas por contextualizações, análises
racionais de comportamento e rebatimentos das interações sociais. Não dava pra
ser tão radical. Afinal de contas, estava tratando com mãe. E mãe, a gente
sabe, é visionária, profética. Prevê que a polarização, o extremismo
representam um mal, um nó difícil de desatar.
Então,
pra quê aquela repressão, se uma tarde de domingo ligada no Sílvio, ela sabia,
não mudava em nada a nossa relação com o mundo, com a nossa luta diária para pôr
o cumê na mesa, e os malabarismos rotineiros para garantir nossa sobrevivência?
Não era aquela diversão pastelão que nos tiraria do rumo. Eu não entendia, mas
entendi que, com a lucidez, com o discernimento que minha mãe tinha sobre nossa
realidade, de maneira alguma, a programação do domingo significava um risco.
Muito
claro isso e tão minimamente explicável que, até hoje me condeno, sofro por
aquela postura autoritária, senhorial de único filho homem metidão, cheio de corda
engendrada pelos hermetismos cristãos. Definidor de gostos, costumes e, dizque,
salvador do mundo.
E
foi uma luta incessante contra a idiossincrasia febril. Por vezes, inglória, de
débeis resultados. Do meio pro fim, quando me vi caminhando para uma
horizontalização, para um alinhamento negociado para as questões mais imediatas
das nossas realizações sociais, me vem este golpe direitista, com o qual nos
debatemos nos últimos tempos.
Lá
atrás, operei constrangimentos na família, animado pela minha aceitação cega às
recomendações da Igreja. Ao conservadorismo e à moralidade piedosa. Era
militante. Aninhado no leito dos credos tradicionais e, no contrapé, à Teologia
da Libertação. Levava pra casa as contradições, o fanatismo, e além da oração,
a ânsia pela revolução... Pelo levante dos pobres.
Pressionava
a família. Mamãe, ligada no Sílvio e olhando na frente, alertava: “olha lá,
menino”.
Mais
tarde, atuando como dirigente sindical, me imaginei com algum poder
revolucionário. Radicalizei. Ou era isso ou não era. Fiquei de cara com metralhadora,
participei de greves de fome, fiz e aconteci com microfone na mão, em discursos
inflamados para a categoria. Sofri perseguições, penei pacas. Doutor Geraldo, nosso
advogado, grande mestre, e um craque na arte da negociação, era como mamãe: “olha
lá menino!. Precisamos ver lá na frente”.
Foi
um custo para mim, aceitar os caminhos da negociação, das ponderações. Dos desapegos.
Com o tempo, estava apascentado e ligado nos limites, nos passos que a perna
pode dar. Entendi que facilitar o entendimento era tornar o mundo possível,
tolerante e com vias abertas. Era como não mudar o canal da TV em que mamãe
assistia ao Sílvio. Uma decisão, um caminho difícil de trilhar, mas como dizia
a mamãe, para quem tem poucos prazeres, poucas aspirações, na vida, temos que
ir conquistando os domingos. Deixa no Sílvio.
Aí
teve um dia quando mamãe, que nunca chamava nome, em meio a um encalacre,
soltou um poderoso palavrão deste tamanho. Depois, veio este tempo em que o
mundo deu uma guinada ao hemisfério sórdido da ofensa rasa, da incompreensão,
do desrespeito, do golpe, das fake news, da privatização das praias, da bancada
da bala, do estupro... E isso não tem graça nenhuma, não é um pastelão.
Alguém
veio e mudou de canal. E aí, o quê... devo entornar.
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