sábado, 22 de junho de 2024

crônica da semana - sem acanhamento asas do brasil

 Sem acanhamento e sem pão

Dessa vez, perdi a vergonha, o meu acanhamento, e perguntei. Tenho essas reservas, sei lá, às vezes a gente chega nas partes  indagando aí a pessoa até malda que é polícia ou fiscal da Celpa. Mas vendo que jeito de um ou de outro não tenho, perguntei.

Resultou que no retorno da minha caminhada pela manhã, deveria realizar a missão de comprar pão. E, um desafio. Sair das mesmices do entorno, procurar outras padarias, ou mesmo lanches de rua que oferecessem pães de tipos diferentes da nossa rotina. Então peguei um caminho alternativo. O que veio a calhar, pois que, estava enjoado daquele caminho de volta num estirão de sol pela Dr. Freitas. E também porque não me apraz tirar a pernada numa monótona retidão. Melhor. Vim quebrando.

E a primeira quebrada foi na Visconde. Cultivo lembranças atadas a um bucolismo pueril daquele lugar. No início dos anos 70, morávamos na vila Dois Irmãos. Casas com paredes geminadas, um quarto/tudo, e bem apertadinhas. Parede-meia, banheiro fora, De família. O largo da rua em piçarra de areia vermelha e fininha que nos permitia a bola toda a tarde com o detalhe de a formação dos times contemplar um bom número na linha e o goleiro. Parecia jogo de verdade. Os goleiros não faziam menção, jogavam na vera, se atiravam naquele chão rijo, em defesas espetaculares. Saíam do jogo vermelhos e ralados.

Ao pegado da garagem de ônibus, tinha um chagão que levava para o igarapé. É a minha lembrança neoclássica. Me leva à contemplação dos detalhes, dos desenhos naturais. Naquele pequeno corredor havia, íntegros, elementos interioranos, inocentes fachadas, cadeiras na porta, meninas de partinha, na janela. Ali na frente, o terreiro de um frescor agradável, vespertino, proporcionado por uma doméstica e eficiente mata ciliar. No final de um suave declive, o igarapé da Visconde (cenário de umas das minhas primeiras crônicas: “O dia mais feliz da minha vida”. Pra ver só, a envergadura sentimental deste chagão). Do outro lado, entre os vagos da cerca, dava para admirarmos, com certa invejinha, o verdejante campo de futebol do Pará Clube. Aquele escondidinho campesino, um modesto condado caboclo, às margens do igarapé compunha um conjunto mais robusto de vivências arraigadas ainda, mesmo dentro de um centro urbano, às rotinas de nossa gente do interior. E isso era visível quando minha patota se adiantava e explorava o estirão da Visconde.

Esta feição de cidade. Os aglomerados, calçadas, fachadas em alvenaria, vilinhas, se muito, se via até a Itororó. Depois, as ocupações se mimetizavam com o capinzal. Caminhos estreitos, casinhas de madeira e muitas cobertas com palha; aqui, ali uma árvore grande marcando vazios e aceiros.

Durante minha caminhada de volta pra casa, reagrupava na cabeça as indicações que me são remanescentes. Me cobrava precisão. Se era verdade mesmo aquela minha reconstituição. O abono veio do testemunho de outra vila. Entre Itororó e Pirajá. Local que meu tio Jorge morou logo que iniciou seu trabalho como feirante. E este detalhe ratifica meu mapeamento porque destaca o longo (e na minha visão de agente ativo, porque o acompanhava, sobre-humano) percurso que meu tio fazia para a feira da Pedreira empurrando o carrinho de mão com as mercadorias (mais com pouco, mudaria pra Mauriti, por ser mais perto da feira). Por vezes, passava o dia na vilinha, e lembro que ele me alertava pra não me meter com a pariceirada da rua e não zanzar pras bandas do capinzal, que era bem adiante, ao pegado.

Hora de dar outra quebrada, ainda mais que sem árvore, no canteiro, uma caminhada pela Visconde maltrata. Fiz questão de quebrar na Alferes Costa. Rua que nem existia naquelas paragens, pelo meu tempo bom, porque ali reinava o mundo sem fim de campinhos do Areal. Tirei a localização pelo Hospital das Clínicas, espaço antes ocupado pelo centro comunitário e mais atrás, pelo Areal. A construção do centro comunitário cortou foi nosso barato. Acabou com o Areal e abriu frentes para a ocupação dos campos do Asas do Brasil, do Trabalhista e de outros que por ali resistiam.

A última quebrada foi na Passagem do Arame. Tá bonita, repaginada, tem parquinho, academia ao ar livre e a brisa fresca que vem lá do igarapé do Zé. Parei para um café, As atendentes me disseram que moram ali há mais de 50 anos. Foi aí que perdi o acanhamento e perguntei onde ficava o campo do Asas. Pra’li, respondeu uma delas estreitando os lábios na direção.

O que torna é que cheguei em casa sem pão, mas com boas lembranças e  três tapiocas molhadas. Uma pra cada.

sábado, 15 de junho de 2024

crônica da semana - deixa no sílvio

 Deixa no Sílvio

“O único prazer que tenho na vida é ver o Sílvio, aí tu vem  mudar de canal!”

Aquela bronca, dada com sinceridade, vinda sem reservas das residuais reservas de dignidade. A exposição doída de uma vida marcada pela sensaboria dos dias atingiu em cheio a minha soberba, a minha intolerância, os meus pueris conceitos regenciais de família. E também aquela confissão crua, envolvida em humilhação e desprezo redefiniu minhas posturas e costuraram meus arrependimentos eternos. A partir daquele dia me envolvi, com reincidentes insucessos, em intenções de alcançar tolerâncias e ponderações. Amparadas por contextualizações, análises racionais de comportamento e rebatimentos das interações sociais. Não dava pra ser tão radical. Afinal de contas, estava tratando com mãe. E mãe, a gente sabe, é visionária, profética. Prevê que a polarização, o extremismo representam um mal, um nó difícil de desatar.

Então, pra quê aquela repressão, se uma tarde de domingo ligada no Sílvio, ela sabia, não mudava em nada a nossa relação com o mundo, com a nossa luta diária para pôr o cumê na mesa, e os malabarismos rotineiros para garantir nossa sobrevivência? Não era aquela diversão pastelão que nos tiraria do rumo. Eu não entendia, mas entendi que, com a lucidez, com o discernimento que minha mãe tinha sobre nossa realidade, de maneira alguma, a programação do domingo significava um risco.

Muito claro isso e tão minimamente explicável que, até hoje me condeno, sofro por aquela postura autoritária, senhorial de único filho homem metidão, cheio de corda engendrada pelos hermetismos cristãos. Definidor de gostos, costumes e, dizque, salvador do mundo.

E foi uma luta incessante contra a idiossincrasia febril. Por vezes, inglória, de débeis resultados. Do meio pro fim, quando me vi caminhando para uma horizontalização, para um alinhamento negociado para as questões mais imediatas das nossas realizações sociais, me vem este golpe direitista, com o qual nos debatemos nos últimos tempos.

Lá atrás, operei constrangimentos na família, animado pela minha aceitação cega às recomendações da Igreja. Ao conservadorismo e à moralidade piedosa. Era militante. Aninhado no leito dos credos tradicionais e, no contrapé, à Teologia da Libertação. Levava pra casa as contradições, o fanatismo, e além da oração, a ânsia pela revolução... Pelo levante dos pobres.

Pressionava a família. Mamãe, ligada no Sílvio e olhando na frente, alertava: “olha lá, menino”.

Mais tarde, atuando como dirigente sindical, me imaginei com algum poder revolucionário. Radicalizei. Ou era isso ou não era. Fiquei de cara com metralhadora, participei de greves de fome, fiz e aconteci com microfone na mão, em discursos inflamados para a categoria. Sofri perseguições, penei pacas. Doutor Geraldo, nosso advogado, grande mestre, e um craque na arte da negociação, era como mamãe: “olha lá menino!. Precisamos ver lá na frente”.

Foi um custo para mim, aceitar os caminhos da negociação, das ponderações. Dos desapegos. Com o tempo, estava apascentado e ligado nos limites, nos passos que a perna pode dar. Entendi que facilitar o entendimento era tornar o mundo possível, tolerante e com vias abertas. Era como não mudar o canal da TV em que mamãe assistia ao Sílvio. Uma decisão, um caminho difícil de trilhar, mas como dizia a mamãe, para quem tem poucos prazeres, poucas aspirações, na vida, temos que ir conquistando os domingos. Deixa no Sílvio.

Aí teve um dia quando mamãe, que nunca chamava nome, em meio a um encalacre, soltou um poderoso palavrão deste tamanho. Depois, veio este tempo em que o mundo deu uma guinada ao hemisfério sórdido da ofensa rasa, da incompreensão, do desrespeito, do golpe, das fake news, da privatização das praias, da bancada da bala, do estupro... E isso não tem graça nenhuma, não é um pastelão.

Alguém veio e mudou de canal. E aí, o quê... devo entornar.

 

sábado, 8 de junho de 2024

crônica da semana - cinema em casa

 Cinema em casa

Já fui muito vicici em cinema. De rua, tela grande, pipoqueiro na sala de espera; exibições encarreiradas com sessões sem esvaziamento da platéia, e som que a gente só entendia os diálogos com muito esforço, quando filme nacional. Filme estrangeiro, me aviava na legenda é que era. Via e revia as películas. Digo até que dividia benzinho as sessões uma na cola da outra que eu assistia. A primeira era pra entender as falas ou ler as legendas. A segunda, para apreciar os movimentos, os jogos de câmera, efeitos, cenas fortes de amor ou ricas na dramaticidade. A última juntava as duas experiências. Era pacote completo. Um olho no enredo, outro na emoção e um reparo atento no sentido do que se dizia em cena.

O cinema, como se falava antes, era a maior diversão num determinado desenho social dos lazeres. Normal que a grande maioria dos meus contemporâneos, se perguntados, citem a sétima arte como a preferida. Dei destaque, me afeiçoei mais, penso eu, por uns detalhes. Morei muitos anos ao pegado do Paraíso, a nossa estimada, respeitada casa de exibição que nos enchia de pavulagem aqui na Pedreira. Se não era o melhor, era o cinema da barra, da comunidade. Éramos íntimos. E como orientava o letreiro ao pé do palco que compunha o imenso salão, fazíamos dele, o nosso paraíso mesmo.

Todas as noites, a minha patota se reunia na calçada do cinema. Pra nada. Jogar conversa fora, insistir numa ou noutra encarnação com um cristo do grupo, passar o tempo, puxar um papo com aquela senhora que ficava na roleta e que era de muito pouco papo, abelhudar a freqüência na bilheteria cada noite pra ver se o negócio rendia uma grana ainda e, aqui, ali, comprar um ingresso e fazer a pré na sessão das 10.

Também virei fã porque cheguei a fazer umas diárias de peão no Paraíso. O titular das tarefas era o Niquela. Cuidava de um tudo. Varria, tirava chicletes das cadeiras, aguava o chão do grande salão (e depois que passei a ajudar na lida, foi que notei o quanto era grande. Ficava na baba depois das vassouradas e enxágues). Era zagueiro dos mais indóceis, do Glorioso Internacional da Mauriti. Um dia deu na telha, me pediu uma ajuda no trampo. Eu faturava uma ponta na subempreitada, mas o que valia mesmo era que entrava de graça e para ver o filme que quisesse, pelo portãozinho lateral, sob o protesto da senhorinha da roleta. O agrado mais legal, porém, estava na missão de ir com o Niquela buscar as latas de filmes, na distribuidora Luiz Severiano Ribeiro. Outro bônus era que eu, só querer, subia até a sala de projeção para acompanhar as manobras e operações daquela engenhoca admirável. Perdia um tempão acompanhando a lampadinha espalhar a luz pelo salão e jogar as imagens na tela. Lá de cima dava mais bola pra’quela máquina fascinante de projeção, que para as aventuras e emoções das películas.

E ponha emoções. Nessa época encantei-me com a beleza da Ursula Andress, num faroeste de pouco interesse. Já era de maior e acompanhei as traquinagens da Dama do lotação e algumas chancadas de enredo saliente sob olhares de inveja da minha patota. Experimentei um clássico em E o vento levou e vibrei, dei saltitos, fiz menção de movimentar o nunchaku q’nenzinho o Bruce Lee.

As salas de exibição sumiram das ruas. Ainda resistem nos shoppings. Para ver um bom filme, podemos hoje também, montar acampamento no sofá da sala e zapear as ofertas da internet e streamings.

Fiz isso no último feriadão. Virei, mexi e achei em um nicho de vídeos, um filme fenomenal. Barravento. O primeiro longa-metragem de Gláuber Rocha. Que maravilha! A gente se vê na telona. Coisa rara. Gente igual a gente. A sequência do samba embrionário. A roda, a cantoria, o berimbau, o passo miudinho, a umbigada, as pernadas da Capoeira. Maravilha!

Luz, câmera, ação. Pipoca, escurinho. Barravento é filme de se ver inúmeras vezes, estirado no sofá.