Sem acanhamento e sem pão
Dessa
vez, perdi a vergonha, o meu acanhamento, e perguntei. Tenho essas reservas,
sei lá, às vezes a gente chega nas partes indagando aí a pessoa até malda que é polícia
ou fiscal da Celpa. Mas vendo que jeito de um ou de outro não tenho, perguntei.
Resultou
que no retorno da minha caminhada pela manhã, deveria realizar a missão de
comprar pão. E, um desafio. Sair das mesmices do entorno, procurar outras
padarias, ou mesmo lanches de rua que oferecessem pães de tipos diferentes da
nossa rotina. Então peguei um caminho alternativo. O que veio a calhar, pois
que, estava enjoado daquele caminho de volta num estirão de sol pela Dr.
Freitas. E também porque não me apraz tirar a pernada numa monótona retidão.
Melhor. Vim quebrando.
E
a primeira quebrada foi na Visconde. Cultivo lembranças atadas a um bucolismo
pueril daquele lugar. No início dos anos 70, morávamos na vila Dois Irmãos.
Casas com paredes geminadas, um quarto/tudo, e bem apertadinhas. Parede-meia,
banheiro fora, De família. O largo da rua em piçarra de areia vermelha e
fininha que nos permitia a bola toda a tarde com o detalhe de a formação dos
times contemplar um bom número na linha e o goleiro. Parecia jogo de verdade.
Os goleiros não faziam menção, jogavam na vera, se atiravam naquele chão rijo,
em defesas espetaculares. Saíam do jogo vermelhos e ralados.
Ao
pegado da garagem de ônibus, tinha um chagão que levava para o igarapé. É a
minha lembrança neoclássica. Me leva à contemplação dos detalhes, dos desenhos
naturais. Naquele pequeno corredor havia, íntegros, elementos interioranos,
inocentes fachadas, cadeiras na porta, meninas de partinha, na janela. Ali na
frente, o terreiro de um frescor agradável, vespertino, proporcionado por uma
doméstica e eficiente mata ciliar. No final de um suave declive, o igarapé da
Visconde (cenário de umas das minhas primeiras crônicas: “O dia mais feliz da
minha vida”. Pra ver só, a envergadura sentimental deste chagão). Do outro
lado, entre os vagos da cerca, dava para admirarmos, com certa invejinha, o
verdejante campo de futebol do Pará Clube. Aquele escondidinho campesino, um
modesto condado caboclo, às margens do igarapé compunha um conjunto mais
robusto de vivências arraigadas ainda, mesmo dentro de um centro urbano, às
rotinas de nossa gente do interior. E isso era visível quando minha patota se
adiantava e explorava o estirão da Visconde.
Esta
feição de cidade. Os aglomerados, calçadas, fachadas em alvenaria, vilinhas, se
muito, se via até a Itororó. Depois, as ocupações se mimetizavam com o
capinzal. Caminhos estreitos, casinhas de madeira e muitas cobertas com palha;
aqui, ali uma árvore grande marcando vazios e aceiros.
Durante
minha caminhada de volta pra casa, reagrupava na cabeça as indicações que me
são remanescentes. Me cobrava precisão. Se era verdade mesmo aquela minha
reconstituição. O abono veio do testemunho de outra vila. Entre Itororó e
Pirajá. Local que meu tio Jorge morou logo que iniciou seu trabalho como
feirante. E este detalhe ratifica meu mapeamento porque destaca o longo (e na
minha visão de agente ativo, porque o acompanhava, sobre-humano) percurso que
meu tio fazia para a feira da Pedreira empurrando o carrinho de mão com as
mercadorias (mais com pouco, mudaria pra Mauriti, por ser mais perto da feira).
Por vezes, passava o dia na vilinha, e lembro que ele me alertava pra não me
meter com a pariceirada da rua e não zanzar pras bandas do capinzal, que era bem
adiante, ao pegado.
Hora
de dar outra quebrada, ainda mais que sem árvore, no canteiro, uma caminhada
pela Visconde maltrata. Fiz questão de quebrar na Alferes Costa. Rua que nem
existia naquelas paragens, pelo meu tempo bom, porque ali reinava o mundo sem
fim de campinhos do Areal. Tirei a localização pelo Hospital das Clínicas,
espaço antes ocupado pelo centro comunitário e mais atrás, pelo Areal. A
construção do centro comunitário cortou foi nosso barato. Acabou com o Areal e
abriu frentes para a ocupação dos campos do Asas do Brasil, do Trabalhista e de
outros que por ali resistiam.
A
última quebrada foi na Passagem do Arame. Tá bonita, repaginada, tem parquinho,
academia ao ar livre e a brisa fresca que vem lá do igarapé do Zé. Parei para
um café, As atendentes me disseram que moram ali há mais de 50 anos. Foi aí que
perdi o acanhamento e perguntei onde ficava o campo do Asas. Pra’li, respondeu
uma delas estreitando os lábios na direção.
O
que torna é que cheguei em casa sem pão, mas com boas lembranças e três tapiocas molhadas. Uma pra cada.