quarta-feira, 29 de julho de 2015

cronica remix - croniquetas de tu

Duas de baixola e uma de tu
Minha mãe, sabemos nós que nos encontramos aos sábados aqui na coluna, era dada ao comércio. Vendia de tudo em quanto. Houve uma época que concentrou todo o seu charme, se virando ali pelo mundo fashion dos cosméticos. Batia essa Pedreira de baixo a alto com os ‘catálagos’ dos mais afamados produtos. Daquela lida saía nosso sustento, mas resultava num dinheiro ramificado, multidirecional. O que significa dizer que mamãe, pelo comum, tirava dum canto para pôr noutro. Grandes encalacres derivavam dessas manobras financeiras delicadíssimas. Dali surgia o doloroso drama da caixa. A caixa era o suprimento, as encomendas dos fregueses. Quando minha mãe começava a falar da caixa era porque faltava grana para resgatá-la. Rolava a agonia para garantir os produtos. Tudo nos trinques, as empresas entregavam a caixa em casa, mas se ficava a ver a transação, a caixa voltava. Voltar significava que a caixa ia para um lugar longe e que os fregueses iam aporrinhar a paciência atrás dos cosméticos já pagos ou apostar na possibilidade de devolução do dinheiro (possibilidade remotíssima, porque dinheiro não mais havia, já estava tudo no nosso bucho). Numa dessas, a mamãe conseguiu o numerário para retirar a caixa. O depósito ficava ali pras bandas do Curió. E quem foi lá resgatá-la? Raimundinho-do-pandeiro, é claro. Como dinheiro só havia o contado, tive que voltar pra casa de ônibus. Agora, dizque eu, com metro e meio, metido dentro do Nova Marambaia-Telégrafo, lutando com uma caixa cheia de perfumes e cosméticos. Como ia me virar, meu pai? Pensei em colocar a caixa no chão, buscar apoio naquele ferro posto sobre as cadeiras e ir empurrando com o pé. Não deu. Todos os pegadores estavam pegados. Havia o vão do corredor e as barras no teto para me segurar. Mas quando, já que eu alcançava. Quando o ônibus foi chegando perto de casa, abracei a caixa e fui varando me equilibrando entre os passageiros que estavam em pé. Bundada daqui, joelhada dacolá, eu parecia uma bola de bilhar triscando num, triscando noutro. Fui assim quicando, até que varei certinho na minha parada. Pedi pra alguém dar o sinal (porque também não alcançava a cordinha) e desci. Moral da história: ser baixola não é problema pra ninguém. A não ser que o ungido tenha que se atar, alguma horinha, com o drama da caixa dentro do ônibus. Aí pega.
Tem também aquela da vassoura que eu usava pra varrer o salão do supermercado Pão de Açúcar, onde trabalhei de peão, lá pelos idos de setenta e uns trocados. A vassoura tinha aquela parte das cerdas enorme, e os filhos dos barões que iam fazer compras diziam “olha, mãe, a vassoura é maior que o menino”. Eu ouvia aquilo, largava a vassoura e ia chorar no depósito. Esta história não tem moral. É, a bem dizer, bem amoral.

Por fim, nesta mini trilogia sem nada a ver uma e a outra com esta prosa que segue, queria eu acertar uma conta num hospital e liguei para saber quanto estava a minha dívida. Inquiri a atendente: “Tu tens aí o valor que devo pagar?” E ela exasperou-se. Inconformou-se porque pautei a nossa conversa no pronome “tu”. Achou um desrespeito. Queria no duro que eu usasse o incipiente, aqui por estas plagas, “você”. Dia desses, lendo Eça de Queiroz, tive pistas do porque de nosso tão simpático e amplamente praticado “tu” ser tão discriminado. Vou pesquisar mais um pouquinho e volto ao caso. Por enquanto, acudo-me a Castro Alves para provar que uma interação na segunda pessoa enseja sim, uma interlocução deveras respeitosa: “Ó mar, por que não apagas/Co’a esponja de tuas vagas/Do teu manto este borrão?”.

sábado, 25 de julho de 2015

crônica da semana - agronômico garrafada

Pra sempre
A amiga chega para uma visita no fim da tarde, já com as anotações.
- Ai menina, eu acho que não tenho coragem!
- Mas axi, deixa de ser mole, mulher. Tu não queres manter o teu casamento na santa paz?
- Quero sim, mas...
- Olha mana, nessas horas não tem nem mais nem menos. Tem é que meter a cara pra segurar o que é da gente. O negócio é garantido e a mulher que deu a receita é das boas. Não falta gente fuçando ali pras bandas do Agronômico atrás das garrafadas dela.
-  Mas como é que eu vou fazer ele beber isso?
       - O que foi que nós combinamos? Isso é garrafada milagrosa pra’quela queimação que ele tem no estômago. Diz que é remédio da pastoral que ele toma sem medo. Abre o teu olho, pequena, que esse teu macho tá te passando pra trás.
- Eraste, isola! Deus me livre e guarde. Não fala isso não, menina. Não pode ser verdade. Eu só acredito vendo.
Fizeram campana na sexta-feira (dia da grana). Da esquina, observavam. De repente um carro para e buzina. Era ele. Apressado. Desce do carro, entra na casa e dali a instantes, sai de braços com uma morena.
- Égua, siri! Não é mesmo o safado – admite, a mulher, indignada.
- Não amofina. És uma mulher nova, ainda. Inteligente. Não és de se jogar fora. É bem verdade que a pequena é jovem e atraente e que isso deve estar mexendo com a cabeça dele, um homem maduro. Tu sabes como é homem velho, é danado pra inventar moda com menininhas. Mas vai passar. Ele não vai te deixar na mão. Tu queres que eu te ajude?
       -Mas como já?
       No dia marcado a amiga traz a lista com os ingredientes para a beberagem receitada pela mandingueira. Um feixe de esquisitices amassadas, fatiadas, picadas ou trituradas: alho da casca branca, folha da camapu, castanha de caju assada, folha de bacaba, chicória, grelo da goiabeira, mel de cana, suco de buriti, água benta, guaraná em bastão, mertiolate de jucá, e uma gota apurada da regra do mês. Tudo misturado nas devidas proporções indicadas no prospecto, batido no liquidificador e coado na peça íntima que ele mais gosta (aquela da oncinha).
- Olha, tu não vais dar pra trás. Fala que é garrafada da freira, boa pra azia.
Não sei dizer da morena. Só sei que no último feriadão, despacharam as crianças para a casa dos avós e ganharam o rumo de Mosqueiro para “uma Segunda lua de mel”, como fizeram questão de divulgar. Partiram para bucólica no maior amor e um sorriso de felicidade de quem vai ser feliz para sempre. Na bagagem, uma caixa de Sonrisal para aquela maldita, e agora, depois do fracasso da garrafada, incurável, dor no estômago.



sexta-feira, 17 de julho de 2015

crônica da semana - Rio

A minha alma canta
Há alguns anos, estive na biqueira de visitar o Rio. Não visitei. Fiz uma conexão no Galeão, iria ficar um tempão esperando pra embarcar, aí, quis dar uma volta pela Cidade Maravilhosa. Guardei a bagagem, me aprontei todo. Quando saí do aeroporto muitas opções apareceram para o passeio. Até demais, chega me deu um sufocamento de tanta gente ofertando o serviço. E, bestão que sou, recuei. Fiquei com medo. Do engarrafamento, do mito Rio. Fiz uma conta, calculei horários, temi não voltar a tempo para meu novo embarque. Dei pra trás e fiquei só na vontade.
Este ano, bateu a coragem. Desde dezembro que programo. Catei informações sobre preços de passagem mais em conta, hospedagem; pesquisei lugar que se come barato. Marquei minhas férias junto com a dos filhos. Controlei as finanças com disciplina espartana (nos primeiros dias de férias em Belém, não pus os pés na rua, no firme propósito de economizar o máximo. Quase que proíbo os meninos de respirar, só para garantir um fôlego a mais para a viagem. Toda a família numa temporada no Rio exige uma austeridade monástica, porque sabemos que estando tudo pela hora da morte, o custo desse passeio sai bem salgadinho). Decisão, um planejamento chato, mas realista, uma força descomunal para vencer a poderosa gravidade de Belém e cá estou eu pra lá e pra cá, balançando numa rede, na varandinha do Alma de Santa Guest House, um simpático hostel localizado no machadiano bairro de Santa Teresa, ouvindo minha alma cantar e, humildemente, versionar Tom. “Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Essa crônica é só porque, Rio, eu gosto de você.”
É, verdadeiramente, uma cidade maravilhosa. Pra qualquer lugar que a gente mire, mostra-se bela e sedutora. O Rio encerra em si a multi interpretação tropicalista e revela o bonito no feio. Transubstancia o lirismo em recortes, em margens e morros. Há poesia até na impetuosidade tectônica que domina a paisagem e na casaria perigosamente suspensa. A plástica da cidade é coisa que entontece.
Além do desenho zelosamente criado por Deus, a geografia da lírica carioca tem muito mais a exibir. E vou logo avisando, que ao contrário das águas frias da baía de Guanabara, outras artes formam a minha praia porque, sabe-se, esta pessoa que vos escreve, ‘não vai à praia. Esta pessoa bebe’. Então...
Nos primeiros instantes na Guanabara, orientei minha bússola pela fragrância ritmada dos tons e semitons de Ipanema, onde partilhei cada cantinho como se houvesse ali, ainda o gingado da garota ou o copo sempre bem suprido de Vinícius, ou ainda o teclado inquieto da máquina de datilografia de Carlinhos Oliveira. Reconhecer o habitat de Rubem Braga, Tom Jobim, Laura Alvim, Millôr Fernandes, entre tantos expoentes da cultura nacional, já inebriaria minhas férias, não houvesse horas depois, conhecido a Lapa.
A Lapa me deixou aluado, (literalmente) sem equilíbrio ante um mundo convulsivo. A Lapa é uma Babel paradoxalmente harmonizada, um borbulhado de estilos e invenções de vida. Mais fervorosamente convicta, na Lapa, a minha alma boêmia canta (e confesso que por causa do dito inebriamento, tropeçando aqui e ali nas palavras, mas canta).   



terça-feira, 14 de julho de 2015

crônica da semana - norte

De norte a norte
No dia 21 de junho próximo passado foi a noite mais longa do ano em Ushuaia, na Argentina. Lá, escureceu às 17h e o sol só apareceu de novo às 10 da manhã. Uma noite especial com duração de 17 horas, naquele ponto distante da Terra do Fogo, bem na pontinha da América do Sul.
Eu não sabia deste evento natural que se realiza na Argentina. Mas sabia de outros do mesmo jeitinho que acontecem nas altas latitudes da Europa. É famoso um vídeo que circula na internet mostrando o sol da meia-noite, na Noruega ou as ‘noites’ de sol na Alemanha da copa de 2002.
Não que eu esteja pra graça com o hermanos depois do baile que eles deram na Copa América, mas me questiono por que não se dá a mesma ênfase que se dedica à banda do norte, aos fatos que nos envolvem cá no hemisfério sul. Com certeza temos um sol da meia-noite na Antártida também, mas ninguém dá ibope. Tudo é pro norte. Tal coisa assim, assim é norte. E parari e parará é norte. E por que torna e por que deixa é norte. A agulha da bússola aponta pra’li. O papai Noel despenca daquele polo com suas renas. Quando se viu acossado pelas inquietações humanas, o monstro Frankenstein exilou-se por lá. O Titanic. A travessia dos nossos antepassados. O vento no norte. As leituras no astrolábio, a guia da Polaríssima.
Por aí a gente tira que há um certo privilégio em estabelecer regras das mais variadas matizes tomando-se como referência as terras do setentrião. Até na cartografia a gente se dá com isso. Os mapas são ordenados de forma que a gente entenda o mundo com uma parte de cima e outra de baixo. E quem está em cima? O círculo polar Ártico, os esquimós, o urso polar, os países ricos, a Europa. Aqui embaixo, a Antártida, os pinguins, os hermanos, os bárbaros do sul. Por que não é de outro jeito? O sul em cima e o norte embaixo; ou o sul à esquerda e o norte à direita. A maneira de ver o mundo tal qual é feita hoje, é tendenciosa. Revela a idéia dos dominadores, dos conquistadores. Denota poder. Verticaliza algo que nem tem direção porque os valores humanos têm propriedades escalares, ou pelo menos deveriam ter. Deveriam ser os mesmos em todo canto e lugar.
Todos nós ouvimos falar, algum dia que no polo (norte) a noite dura seis meses e o dia, mais seis. Não entendemos de prima, como isso pode acontecer. Mas é verdade. Em determinada latitude a Terra fica de tal jeito, com relação ao sol, que permite a semestralidade de cenários opostos. E fazendo justiça à mídia, o vídeo da internet sobre o sol da meia-noite é deveras esclarecedor. Didático. A gente que não cria, acaba crendo e até dominando a dinâmica de deslocamento de Terra e Sol.
O que nós não ouvimos falar é que no polo sul, acontece a mesma coisa.

Agora, por essa época, Ushuaia, na Argentina, teve uma noite longuíssima. Lá no cocuruto do polo sul inicia-se uma noite de seis meses. As árvores perderam as folhas, na Terra do Fogo. Mas ninguém sabe. Fosse na Alemanha ou Noruega, estava bombando de vídeos na internet. Porque tudo é pro norte, porque a história é contada na versão boreal. E parari, parará.

sábado, 4 de julho de 2015

crônica da semana - sem paneiro

Sem paneiro pra fazer fogueira
A alegria quadrilheira ainda retine. O batalhão do Pavulagem também estica a brincadeira e arrasta o povo amanhã, mas o certo é que Junho foi-se deixando saudade. E uma inquietude: tenho me batido para entender a razão de santos tão distantes no tempo, na legitimidade e no espaço serem homenageados, todos juntos, nessa época. Assim, de prima, não tem muito a ver.
Há, porém, a surpresa. O João junino, morria e não sabia que era o Batista. Cria que fosse o outro, o evangelista. Mas é o pregador do deserto. Também não sabia que era santo. Pra mim, era profeta, aquele que pedia o arrependimento e preparava o caminho do Messias. Talvez pela minha ignorância, não conheça santos profetas, nunca ouvi falar num santo Isaías, por exemplo. Sobre São João, então, minha dúvida cai sobre a legitimidade, embora o considere o grande profeta do advento.
Quanto a Pedro, sem dúvidas. É pedra. Fundador da igreja (que canoniza). Tem lá seus passos ligados aos de João. Devem ter atravessado o Jordão em caravanas de fiéis ou de pescadores. É santo dos mais confiáveis. Tem a chave do céu e aqui na Pedreira, legitima-se realizando o milagre da multiplicação dos peixes todo dia 29 de junho. Já fui pra fila muitas vezes pegar meu quinhão de Piramutaba, graças a Pedro.
Taí, tirando a categoria de profeta atribuída a João, entre estes dois, há a coincidência da época. Isso explica um pouco a comemoração casada. Agora, e Antônio?
Antônio era Franciscano e nasceu mais de mil anos depois de João e Pedro. É santo canonizado pela igreja e pelo apelo popular. Esteve frente a frente com Francisco de Assis e foi frade pensador. Eis uma contradição bem marcante entre Antônio e os outros dois homenageados. O tempo (além da fé inspirada já na igreja fundada por Pedro, e num jeito de vida incentivado por Francisco. Foi movido por estímulos diferentes, na forma, daqueles que tocaram Pedro, o pescador; e João, o profeta).
O que de interessante descobri é que esta comemoração envolvendo os três personagens do cristianismo está ligada ao solstício. Em junho, ocorre o dia mais longo do ano na Europa. Pra gente aqui da beira do Amazonas isso conta pouco, agora, se imagine numa cidade em que a noite comece lá pelas 11 horas. Isso é fascinante. Os antigos pensavam assim. Aquele dia especial trazia o início do verão, novas esperanças, possibilidade de realizações, padrões para a agricultura. Era um dia consagrado. A revelação de um cuidado vindo dos céus. Creditaram então este acontecimento aos deuses. Criaram uma mitologia regente da natureza.

Com a ascensão do Cristianismo, a mitologia primitiva foi substituída pelas crenças cristãs. Os deuses, por santos. O mês de junho continuou sendo um mês de revelação, mas agora, dirigido pelos santos católicos. Para iluminar as esperanças, como o sol do solstício, a igreja agrupou Antônio, João e Pedro, que, conta-se, nasceram todos no mês de junho (isso explica a homenagem aos três, juntos). Não encontrei registros de São Marçal e também não encontro mais paneiros pra fazer fogueira, pela cidade.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

crônica remix - metro e meio de neguinho

Metro e meio de neguinho
Naquela época, eu nem fumava, mas andava sempre com um cigarro de um tabaco bem forte (que eu mesmo tecia com aprumo e zelo), no canto da boca, fazendo fumaça para espantar o pium (um mosquitinho atentado que a qualquer vacilo nos drenava o sangue sem pena). Não tinha rigor no vestir mesmo porque, ali, no campo, não fazia questão de ser fashion. Uma bermuda surrada e uma camiseta de algodão fina me valiam. Um chapéu de palha raso, para fazer frente ao sol de Rondônia, também.
Tínhamos uma campanha para realizar numa fazenda que ficava perto de Ariquemes. Eu tinha um acampamento, ali próximo e fui escalado para fazer o reconhecimento da região e iniciar os contatos com o dono da terra.
A minha equipe contava com umas vinte pessoas. Deixamos o carro na estrada e seguimos a pé até a sede da fazenda. Lá encontramos um grupo que veio nos recepcionar. Um rapagão meio arqueado de tão alto que era, adiantou-se. Passou por mim, sem dar muita trela para o meu povo que se alinhava organizadamente ao redor. Parou no fim da fila, cumprimentou com respeito, um dos auxiliares e se colocou à disposição para as negociações sobre a pesquisa da cassiterita. O rapaz, meio desconcertado, declinou educadamente daquela intenção e adiantou para grandalhão que o responsável pela conversa e pela pesquisa era eu, que estava ali ao lado da turma, esperando o desfecho daquela indelicadeza. Ele voltou, apresentou-se como capataz, desculpou-se meio sem vontade, disse já estar sabendo do que se tratava e sem mais delongas nos liberou a área. Um cafezinho sequer, daqueles puros, cheirosinhos, de fazenda, ofereceu. Tudo bem. Demos meia volta e caímos no trecho.
Foi fácil entender a atitude do capataz. O rapaz que ele escolheu para prestar reverências era o único louro de olhos azuis da equipe. Nosostros exibíamos o perfil cafuso amazônico e ele, como tinha a missão de ratificar um acordo de alto nível que resultaria em uma boa grana, que modificaria a rotina da fazenda e que definiria o futuro de muita gente ali, caso houvesse a tão sonhada reserva de cassiterita, ligou este contexto delicado ao estereótipo representado pela cor da pele. Interpretou que o poder de decidir sobre aquela campanha, só poderia vir de alguém igual a ele de pele branca, estatura avantajada e dorso arqueado. Jamais pensaria que essas atribuições estavam concentradas exatamente naquele neguinho de um metro e meio com chapéu de palha com abas desfiadas, ostentando uma vestimenta barata e enganando os piuns com baforadas difusas do poderoso ‘Fumos Leão’.
Na história recente do Brasil, não registramos conflitos raciais tão explicitamente drásticos como aqueles que conhecemos na história da África do Sul ou dos Estados Unidos. O que não significa que aqui a discriminação inexista. E o que não significa também que com este aplainamento dos ímpulsos, sem reações mais significativas, a gente tenha conseguido o paraíso da tolerância racial. Aquela experiência em Rondônia, me causou desconforto e me mostrou que o caminho para vencer o preconceito, exatamente por causa desta indolente hipocrisia reinante no país, é bem mais tortuoso do que nos pregam as doutrinas ladrilhadas de fantasias.
Depois daquele dia, consegui até conversar com o capataz taludão. Rolou até o café. (A possibilidade de royalties polpudos arrefecia qualquer ímpeto de segregação). Só que deu azar, o gigante. Ao final da pesquisa, a área deu negativa e a mina com o cobiçado minério não vingou.

Quanto a mim, ainda bem que não me impressionei com aquela vexação e segui meu caminho evitando dar sangue aos piuns.