Duas de baixola e uma de tu
Minha
mãe, sabemos nós que nos encontramos aos sábados aqui na coluna, era dada ao
comércio. Vendia de tudo em quanto. Houve uma época que concentrou todo o seu
charme, se virando ali pelo mundo fashion dos cosméticos. Batia essa Pedreira
de baixo a alto com os ‘catálagos’ dos mais afamados produtos. Daquela lida
saía nosso sustento, mas resultava num dinheiro ramificado, multidirecional. O
que significa dizer que mamãe, pelo comum, tirava dum canto para pôr noutro. Grandes
encalacres derivavam dessas manobras financeiras delicadíssimas. Dali surgia o
doloroso drama da caixa. A caixa era o suprimento, as encomendas dos fregueses.
Quando minha mãe começava a falar da caixa era porque faltava grana para
resgatá-la. Rolava a agonia para garantir os produtos. Tudo nos trinques, as
empresas entregavam a caixa em casa, mas se ficava a ver a transação, a caixa
voltava. Voltar significava que a caixa ia para um lugar longe e que os
fregueses iam aporrinhar a paciência atrás dos cosméticos já pagos ou apostar
na possibilidade de devolução do dinheiro (possibilidade remotíssima, porque
dinheiro não mais havia, já estava tudo no nosso bucho). Numa dessas, a mamãe
conseguiu o numerário para retirar a caixa. O depósito ficava ali pras bandas
do Curió. E quem foi lá resgatá-la? Raimundinho-do-pandeiro, é claro. Como
dinheiro só havia o contado, tive que voltar pra casa de ônibus. Agora, dizque
eu, com metro e meio, metido dentro do Nova Marambaia-Telégrafo, lutando com
uma caixa cheia de perfumes e cosméticos. Como ia me virar, meu pai? Pensei em
colocar a caixa no chão, buscar apoio naquele ferro posto sobre as cadeiras e
ir empurrando com o pé. Não deu. Todos os pegadores estavam pegados. Havia o
vão do corredor e as barras no teto para me segurar. Mas quando, já que eu
alcançava. Quando o ônibus foi chegando perto de casa, abracei a caixa e fui
varando me equilibrando entre os passageiros que estavam em pé. Bundada daqui,
joelhada dacolá, eu parecia uma bola de bilhar triscando num, triscando noutro.
Fui assim quicando, até que varei certinho na minha parada. Pedi pra alguém dar
o sinal (porque também não alcançava a cordinha) e desci. Moral da história: ser
baixola não é problema pra ninguém. A não ser que o ungido tenha que se atar,
alguma horinha, com o drama da caixa dentro do ônibus. Aí pega.
Tem
também aquela da vassoura que eu usava pra varrer o salão do supermercado Pão
de Açúcar, onde trabalhei de peão, lá pelos idos de setenta e uns trocados. A
vassoura tinha aquela parte das cerdas enorme, e os filhos dos barões que iam
fazer compras diziam “olha, mãe, a vassoura é maior que o menino”. Eu ouvia aquilo,
largava a vassoura e ia chorar no depósito. Esta história não tem moral. É, a
bem dizer, bem amoral.
Por
fim, nesta mini trilogia sem nada a ver uma e a outra com esta prosa que segue,
queria eu acertar uma conta num hospital e liguei para saber quanto estava a
minha dívida. Inquiri a atendente: “Tu tens aí o valor que devo pagar?” E ela
exasperou-se. Inconformou-se porque pautei a nossa conversa no pronome “tu”.
Achou um desrespeito. Queria no duro que eu usasse o incipiente, aqui por estas
plagas, “você”. Dia desses, lendo Eça de Queiroz, tive pistas do porque de
nosso tão simpático e amplamente praticado “tu” ser tão discriminado. Vou
pesquisar mais um pouquinho e volto ao caso. Por enquanto, acudo-me a Castro
Alves para provar que uma interação na segunda pessoa enseja sim, uma
interlocução deveras respeitosa: “Ó mar, por que não apagas/Co’a esponja de
tuas vagas/Do teu manto este borrão?”.