LÚCIA
Outro dia eu vi a Lúcia. Cruzei com ela no calçadão da
Presidente Vargas. Ali, a gente sempre encontra alguém, protagonista do
vai-e-vem urbano. Alguém que a gente conhece. Que já viu. Um amigo, um parente
distante. Rostos comuns da cidade. Um
vizinho. Um colega da escola ou do antigo trabalho. O calçadão da Presidente
Vargas, ladeado pela serenidade vespertina da Praça da República, é uma química
de mil reações. De ligações afins. De encontros. É, um instante, olhar para
trás e perguntar-se: “mas aquela não é a Lúcia?”
Era a Lúcia. Passou por mim com aquele mesmo ar
submisso e dadivoso de outrora. Com o delicado perfil longitudinal e fugidio
que encantava galanteadores imberbes. Com o indisfarçável andar faceiro e
convidativo que persegui há tantos anos.
Mas não podia ser a Lúcia. Os anos passaram e ela não
teria preservado o corpo em plenitude ante a quantas aventuras mundanas.
Quantos filhos paridos e espalhados por famílias de bom coração. Quantas marcas
de sangue deixadas no rosto por amantes violentos. Quantas injeções doloridas
para combater a bactéria endêmica. Ante a quantas noites de vigília a espreitar
os desconhecidos pais de suas crianças.
Era a Lúcia. Olhei para trás e a acompanhei sumindo na
pequena multidão que atravessava a rua Gama Abreu. E reconheci as pernas finas
e insinuantes que, como serpentes encantadoras, entrelaçavam os corpos, já
entregues, dos soldados da brigada militar.
Não, não era a Lúcia. As esquinas da vida não dariam a
chance de aquele rosto de beleza etrusca se perpetuar; ou de aqueles olhos algo
tristes, cinicamente humildes e fulminantemente belos, se eternizarem; ou de a
boca infantil, paradoxalmente, doce e venenosa, perenizar-se como fonte de
incontrolável prazer. Não, as esquinas não permitiriam.
Era a Lúcia, eu a vi ao longe, perdendo-se no
burburinho da tarde em frente ao prédio
centenário: os quadris reprimidos pela guerrilha do parto e insistentemente
sedutores; os seios deprimidos por sempre dizer não ao amante lascivo ou ao
pequenino desejoso de leite (seios estéreis de prazer e de vida); o lado
dolorido, calejado de cama por lamentar ausências de companhias fugazes,
marcado por estrados mal armados e
singularmente modelado de tanto procurar um jeitinho para dormir na realidade
crua das manhãs.
A Lúcia apareceu assim, como quem brota de uma esquina
mal iluminada. Trazia uma criança no ventre. Oferecia o bebê a quem lhe
garantisse a vida ou a esperança de vida. Deixou a criança no meu colo, certo
dia e, apressada, voltou para os braços de seus homens.
Era uma linda mulher, a Lúcia. Tinha um corpo de
adolescente mimada e um rosto de rainha do Nilo. Lúcia era contemplável e
irradiava tanta luz quanto a estrela mais brilhante. Era a preferida do
batalhão. A criança que ela deixou comigo, hoje é mãe dedicada e bendiz o leite
dos seios (herança de quem ?).
Tantos anos se passaram e a figura da Lúcia é tão
viva, embora por certo, ninguém mais pare no meio do caminho e a procure na multidão.
Ninguém mais a deseje tanto quanto a desejei.
Alguém passou por mim numa tarde refrescada pela brisa
que soprava da baía lá embaixo. Eu parei no calçadão da grande avenida e
voltei-me para trás indeciso. Não era a Lúcia... E era a Lúcia.
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