sábado, 29 de setembro de 2012

crônica da semana- o amor e


Amar e outros medos (parte III)
O ônibus avançava pela Boulevard (como prega o nosso paraensismo) ou ‘pelo’ Boulervard (como previne a etimologia) Castilhos França em desabalada. Pegou aquele estirão desde o igarapé das Almas e disparou em direção ao Ver-O-Peso sem dar muita trela para a comodidade dos passageiros. Uma ou outra vez o motorista aliviava o pé do acelerador, talvez pela presença de um buraco, uma ondulação na pista, mas logo a seguir, apimentava de novo. Isso provocava  uns solavancos suspeitos dentro do coletivo. Mamãe pirou com aquilo, com aquela barulheira entrecortada do motor, da lataria, do asfalto roendo os pneus. Deu um nervoso nela.
Havíamos chegado do Acre não tinha um isso de tempo. Artes como Boulevares, ônibus balangando, pneus cantando, motor acelerando e desacelerando eram novidades. Bateu o pânico. Mamãe se levantou do meu lado sem saber exatamente o que fazer. Fez menção de sair para o corredor, mas retrocedeu. Agarrou-se à haste de ferro do banco da frente, como se procurando a máxima segurança e começou a gritar descontroladamente que o ônibus estava sem freio, que a barra de direção estava quebrada e que ai meu Deus, vamos morrer.
Eu ali do lado dela, não sabia se ficava com o medo ou com vergonha. Não, pera, num primeiro momento, fiquei com vergonha. Levantei discretamente, chamei baixinho, ei mãe, ei mãe. Depois sentei de novo cabisbaixo. Percebendo o alvoroço, aí foi que o motora deu uma chacoalhada no veículo, nessa hora todo mundo cambou prum lado do carro, inclusive eu que varei destrambelhado para o corredor. Mamãe segura estava, segura ficou, gritando. Nessa hora, tentando me equilibrar no corredor do ônibus, fiquei com medo.
O fuque-fuque só foi parando, acalmando, quando avistamos, no meio da pista, imponente, mas com a simpatia de sempre, o Arquimedes. Gesticulava, indicava, direcionava. E o ônibus foi reduzindo a velocidade, atendendo às orientações daquele guarda de trânsito fora de série. Descemos no clíper da Portugal aliviados. Minha mãe ainda proferiu uns elogios cáusticos ao chofer enquanto descia os degraus, mas dali, nos aprumamos e seguimos rumo à Lobrás, para a compra dos sortimentos de ocasião. O medo, porém ficou...
Alguns medos, desconfiava que não eram normais. Depois que foi comprovada cientificamente a total impossibilidade, reconheci ser besteira mesmo aquele medo de morrer prendendo a respiração. Brincava-se disso na escola, na rua, mas eu, heim, passava longe. Tinha quase certeza que se ficasse sem a suspiração por um zilhonézimo de segundo, apagaria, mas dizque não.
Agora, perder respiração por farinha no grugumim (ou goto), ah isso eu tenho pavor. E olha que aqui, ali, acontece. É batata, um bombonzinho mal chupado, uma farofinha desencaminhada, uma salivada de través, aí já era. Aperreio na certa. A gente vai esverdeando a tez, arregalando os olhos, gesticulando. Uma situação. A trava é tanta que fiz um curso de primeiros socorros e aprendi até a tomar uma ação nesse momento. Vou ensinar caso alguém me perceba ficando verde uma horinha dessas. É só passar para trás do asfixiando, e como se estivesse lhe dando um forte abraço, pressionar a barriga logo abaixo do peito. Isso faz com que a glote se abra (ou expulse o corpo estranho) e a pessoa volte a respirar normalmente. Não se deixe desmaiar. A gente mesmo pode se salvar.
Sobre o amor digo apenas que Ame/ Enquanto meu cansaço/admite Que/ De minhas vestes/ Resta o lado dolorido/ De teus cuidados/ Escarro vermes coloridos/ De meu futuro/ De teu futuro/ Compro cartas/ Faço jogos/ Traio a massa/ Cresço louco.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

crônica remix veríssimo


Veríssimo, L.F. é meu amigo
A última do Luís Fernando Veríssimo é que ele acha que realmente a internet tem uma importância fundamental na vida dele. Depois dela, nunca mais se embananou para escrever o nome do Nietzsche.
E para entender o quanto o Veríssimo tem razão, para escrever o nome do filósofo alemão, aí em cima, tive que recorrer ao Anticristo que repousa poderoso entre tantos homens raros ali na minha estante.
É que desde a semana santa, estou sem internet. Éraste! Como faz falta.
Se eu estivesse conectado, não precisaria ir atrás de uma obra do Nietzsche para acertar a escrita. Bastaria um clique e pronto.
Essa de ficar desconectado me desnorteou. Me distanciou dos meus amigos virtuais, me limitou a pesquisa, e me impôs a necessidade de pirangar uns minutinhos no computador da minha amiga Marcinha, só para passar a crônica pro jornal, já que não sei me atar em ciberes.
E tá difícil de, aqui em Vila dos Cabanos, eu reaver a internet. Primeiro porque perdi a confiança nos fornecedores (provedores, sei lá como é o nome). Pô! Eu tinha um contrato já há um tempo com uma empresa e ela me oferecia o serviço que me bastava. Acontece que sem a menor explicação a empresa cancelou o serviço e me deixou a ver navios, sem a possibilidade de navegar. Ah, mas eu fiquei pê-da-vida.
Resultado: queria escrever sobre o meu ator preferido, que arrasou no filme que ganhou o Oscar desse ano e nada, não consegui ainda pesquisar a carreira dele, os filmes principais, as premiações...
É, a internet muda e desmuda nossos ânimos.
Ainda bem que existe o Veríssimo para dar uma ironizada no poder da internet.
Por falar em Veríssimo, tenho uma história com ele (tenho uma foto com ele também).
Acompanho o escritor gaúcho desde o início dos anos 80. Foi o tempo em que ele estourou com os clássicos “O analista de Bagé” e “Ed Mort e outras histórias”. Para mim, ele é um homem raro na literatura moderna brasileira (e ali, na minha estante). Faz de um tudo. Emociona, alegra, diverte, seduz. Tenho uns quantos livros dele aqui em casa e com todas as vênias necessárias, posso dizer que se hoje escrevo alguma coisinha é por causa dos belos exemplos de composição e de versatilidade que percebi em Veríssimo.
Disse isso a ele quando de sua participação no “Café das Letras” em uma das Feiras do Livro realizada aqui em Belém.
Foi um momento especial para mim e também de uma bela surpresa: eu pensava que Veríssimo fosse uma entidade própria da minha geração, mas que nada, o que chamou a minha atenção durante o encontro com o escritor, foi a grande quantidade de jovens na platéia e cada um mais especialista em Veríssimo que o outro. Senhores nas declarações e nas perguntas ao escritor.
Quando chegou a minha vez de falar, quis superar os meninos. Não contei conversa e rasguei a maior seda. Disse tudo o que tinha vontade. Transbordei em admiração pelo autor.
Ao me responder ele se esmerou em elegância e educação. Agradeceu os elogios e falou que a partir daquele momento tinha um amigo aqui em Belém. Eu claro, pequei corda.
Na seqüência do encontro ele faria uma sessão de autógrafos. Eu, para impressionar, levei o exemplar mais antigo da minha coleção, “O popular”. E deduzi: bom, já que agora somos amigos, com certeza ele vai mandar a assessoria me chamar para um autógrafo especial.
Ledo engano.
Entrei no rabo da fila, lá pelas nove da noite, e às 11 e poucas, quando as portas da Feira já haviam sido fechadas, foi que consegui sair de lá, todo pávulo, com o autógrafo e a foto ao lado do meu escritor preferido e meu amigo Luís Fernando Veríssimo.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Crônica da semana - pé de alface


Pé de alface
Nos últimos tempos, tenho encontrado com amigos meus de eras áureas da Mauriti. Morei boa parte da minha vida ali, na biqueira do cinema Paraíso e de confronte do Aguenta o Tombo, o grande campeão do carnaval. De lá trago boas lembranças (assusta-me, porém, o status da longevidade média da minha turminha. Isso não posso esconder. Aqui, ali,  quando entabulo uma conversa com um contemporâneo e tentamos escalar o inquebrantável plantel do Internacional da Mauriti, sempre falta um atleta. Infelizmente, uma parte considerável do nosso time saiu de campo ainda com o jogo em andamento).
São recordações de um jogo que não se dava somente naqueles campos lá pras bandas da Augusto Montenegro. Ele se realizava no meio-fio das nossas vidas, no asfalto quente da rua ou na sombra das acácias. E cada um de nós mirava um sonho bom para o futuro.
O meu era simples. Inspirado numa cena de sábado. Eu tinha o costume de, à hora do ócio, ouvir a minha AM preferida, em frente à vila que eu morava. Me aquietava à sombra de uma árvore e ficava apreciando o movimento...quando Zizi Possi cantava “ai, meu bem-te-vi um sonho/ai, meu bem, meu bem-te-vi sonhar”, cantava com ela (sim, naquela época tocava Zizi Possi, nos programas de rádio populares). Era a hora que o pessoal voltava da feira com as compras. No sábado a aviação era mais sortida e mais densa. Eu prestava atenção nas sacolas. Delas, sempre saltavam frondosos pés de alface, cordas de feijão verde e maços de cheiro e couve. Eram componentes especiais para o fim de semana. Diferentes do feijão e arroz cotidianos. Sábado e domingo a mãe variava e fazia uma salada, uma gororobinha de legumes, um charuto de couve...
Mas, ora, era mesminho a hora do nosso encontro. Vinha ele, como se houvéssemos combinado. Como uma regra imutável, um compromisso inabalável. Uma missão.
A roupa mínima de short e camisa de botão desabotoada no peito, um chinelo verde roído no calcanhar, talvez um boné e muita dignidade. Percebia uma certa altivez, um orgulho naquele caminhar, com se me mostrasse, olha, assim que se faz, é assim que se mantém uma família, se provê a prole com o de cumê mais aquele de arrumado no sábado.
Aquela cena me comovia, me fascinava. Pensava cá comigo que quando eu crescesse, trabalhasse, ganhasse o meu dinheiro, ia ser igual aquele jovem pai. Pensava que também poderia prover meus filhos de comida e dignidade. E filhos. Filhos... Me encantava ver ele cumprir aquela missão, ladeado de meninos.
Eram uns três ou quatro, não me lembro bem. Sei que era uma escadinha, um seqüente ao outro de mãos dadas, do menor para o maior, o mais gitinho, agarrado ao short do pai. E acho que falavam entre si, desenvolviam prosas e risadas, tornavam aquele momento agradável, de afetos, de cumplicidades e comunhão. Trazia também, invariavelmente, uma saco robusto de farinha alçado ao ombro. Não via descontentamento ou cansaço nele. Era clara a sua satisfação. Estava sempre atento aos meninos. Uma maravilha aquilo, Uma imagem inesquecível.
E era este o meu sonho, ali embaixo do pé de acácia, na entrada da Vila Mauriti. Ser um pai de responsa. Fazer o caminho da feira carregando uma sacola sortida , cercado por uns quantos meninos e pleno de amor.
Encontro meus contemporâneos, e me ponho a lembrar da nossa patota. Tento recompor uma zaga que não mais existe. A longevidade me preocupa. O jogo, o jogo. Mas, miro no meu sonho. Meu jogo ainda está em andamento. Na sacola ainda cabe um frondoso pé de alface. E se a chance me for dada, encaro de bom grado, uma prorrogação.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

crônica remix- equinócio


Jambo, jambo, jambo
O bacana da gente viver assim, na faixa intertropical do globo é essa ausência total dos conformes e compreendos das estações do ano. Se contar que aqui na Amazônia estamos bem pertinho do meio do mundo aí a coisa destrambelha de vez. Se ao sul, não existe pecado, aqui ao pegado da linha que divide o planeta (da Vila dos Cabanos, de onde escrevo agora, segundo a imagem que baixei do Google Earth, estou a apenas 1 grau, 38 minutos e 8 segundos da linha do Equador) grassam os libérrimos caprichos da natureza. Ou como bem a propósito, nos revelam os versos da bela canção “Dias Assim”, da altamirense Joelma Kláudia, por aqui, “Um dia sol; outro dia, chuva”.
E sabe, para a época, até que tem chovido bem este ano. E cada pampeiro! São aquelas chuvas desobedientes que vêm ali das bandas do Marajó. Enfezadas que só elas, chegam trazendo trovões e relâmpagos de dar arrepio, no finalzinho desprotegido, da tarde. Já reparou? A gente tá bem assim, se vendo com o calorão e, de repente o tempo forma. E aí é água que não acaba mais.
E é este inconformismo, este charme tropical que nos coloca alheios ao tradicionalismo climático da Terra. Entretanto, quer a latitude queira, quer ela não queira, de acordo com o calendário publicado pelo site Cosmobrain Astronomia, no próximo dia 22 de setembro, às 12:44h, a primavera chega. Trazendo...
Primeiro trazendo o sol. No dia 22, acontece o equinócio de primavera. É o dia em que o sol posta-se rigorosamente sobre a linha do Equador. É o dia em que o sol nasce exatamente no leste e se põe inequivocamente no oeste. Dá até pra gente traçar o percurso do sol a partir deste dia. É só a gente localizar um ponto fixo (pode ser um poste da rua, uma árvore, um prédio) que coincida com a posição do sol ao nascer e outro que o acompanhe no poente. De segunda-feira em diante a gente vai perceber o sol se distanciando destes pontos a cada dia, no seu obediente caminhar rumo ao sul.
Depois, trazendo as marés altas. Não tão altas como aquelas de março que lavam os (imaculados) trilhos do belocentro. Mas um tantinho a mais que as normais. É explicado este agito nas águas da Guajará pois que estando o sol sobre o Equador rola um frisson gravitacional. No Equador a Terra volta-se diametralmente sensual para o astro-rei. Fica, digamos, mais perto do sol, e nesta situação, a atração é fatal. Incontestável. Daí os sassaricos e remelexos líquidos pela orla. Tudo nos conformes com Newton, observo.  As marés altas, conhecidas como marés de sizígia, porém, prometem espetáculos nos períodos limites do equinócio, no meio e no final do mês, nas luas Cheia e Nova. Agora por estes dias vivemos dias de calmaria anunciados pelas marés de quadratura, correntes comportadas regidas pela lua minguante (e queira o bom Deus que tudo isso que antevejo se consagre ‘por agora em adiante’, do contrário, vou levar um puxão de orelhas do meu professor Werner  Truckenbrodt, porque não aprendi direito a lição sobre as correntes de maré).
Por último, ia dizer que a primavera nos chega trazendo as flores. Mas essa não é toda a verdade. As flores já estão. As flores, por aqui já são. A roseira aqui de casa, por exemplo, desde que tempo se faz...rosa.  Prescinde da sazonalidade para brotar. Generosa que é, me fornece um botão quando bem entende.
E se ‘nosostros’ do Norte do Brasil não temos inverno friozinho, não temos folhas caindo (com exceção daquela fulgurante samaúma que tem lá na Bernardo Sayão) e não temos flores anunciando a primavera, o que afinal a primavera nos traz?
Tenho pra mim que ela nos traz mangas vistosas e jambo, jambo...jambo.
 

sábado, 15 de setembro de 2012

crônica da semana - pretação


O prestação
Quando o cobrador aparecia lá fora no portão, o menino saía em disparada pelo corredor. Mãaaaaaeee-ê, o prestação! Na mesma pisada, o cachorro se abalava com mais de mil lá de dentro latindo grosso e enfezado. O pobre do homem torcia para que o cercado de gravetos retorcidos, atados com uma tira de borracha dura, dessas que capeiam o pneu de carro, resistisse à fúria do cão. A jovem dona da casa largava a roupa que estava espremendo no tanque e ganhava o rumo da rua enxugando as mãos no vestido de tecido barato e mentindo alto. Não precisa ter medo, ele não morde não. É só barulho. E o bicho possesso rosnando brabo com a cabeça quente de tanto martelar o vão entre os gravetos. Esta cena se repetia toda semana. E ela dizia, ah, moço, passe pra semana que meu dinheiro ainda não saiu. E lá o galego dava meia volta e desaparecia no final da rua com a cabeça protegida por um esturricado chapéu de couro, levando uma rede bem colorida dobrada no ombro, umas panelas de alça em umas das mãos e na outra, um maço de Minister, um isqueiro e a ruma de cartões que iria cobrar naquele dia.
Era useira e vezeira em malinar assim com os prestações. Nas raras vezes em que tinha dinheiro, mesmo assim, não pagava. Era o calibre dela desgostar os outros. Fazer o mal.
Sempre foi assim. Quando criança, esnobava os coleguinhas. Na hora da merenda ficava ostentando o bico de pão que trazia de casa e fazia pouco dos outros que não tinham nem um isso pra comer. Vez ou outra, um mais descontrolado se aproximava. Espiava, fitava o lanchinho com o olhar pidão. Perguntava (mesmo sabendo que era um tantinho de pão). Qu’é isso? Pão com manteiga que mamãe me deu pra mim merendar, respondia ela, algo sádica. Me dá um pedaço, continuava o pequeno, já mundiado pelo passeio tentador daquele d’cumêzinho ali, bem na frente dele. Ela esticava o polegar até delimitar uma tirinha milimétrica e marcava com a unha a parte que cabia ao menino. Toma, ordenava, quase empurrando o pão na boca do coleguinha. No instante em que o moleque se animava com o bocão à vante, aí ela zombava do pobre. Se deliciava em movimentos de negação, trazendo o braço para trás, tirando o pãozinho do alcance do garoto. Aquele era um divertimento sem comparação. Sentia um contentamento, um gozo feérico. Agradava-lhe extraordinariamente tal aviltamento, vibrava com a humilhação que impunha ao amiguinho. Até que o menino abarcava com uma mordida o naco esmigalhado do pão e ainda uma boa parte da mão dela. Daí era uma reclamação só. Não te dou mais, vais ver. E saía, escondendo o sorriso cínico, em direção à outra vítima.
Na adolescência, infernizava os vizinhos nas brincadeiras de pira, ao anoitecer. Enquanto o moleque contava os 31 alerta com o rosto colado ao poste, ela se enxeria, se insinuava, encostava nele, cochichava o lugar secreto em que ela iria se esconder. Tinha o fogo da idade, mas fazia disso uma arma para submeter as presas. Assanhava os pequenos, esperançava com ios e chios naquela construção abandonada do outro lado da rua que ninguém maldava ser o esconderijo dela porque era um lugar escuro, soturno, e que todo mundo na rua tinha como a morada da Matinta. Fazia os rapazinhos vencerem o medo e atravessarem para ter com ela. Mas chegando lá, era só troça. Despistava com trejeitos salientes, se embrenhava pelos labirintos de tijolo cru, quando davam fé, já estava lá do outro lado, no poste, batendo 31 alerta! 31 alerta! e jogando o bobinho para ser a mãe mais uma vez.
Era o calibre dela, fazer o mal. Jovem mãe, pôs um cachorro no terreiro só para espantar o prestação.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

crônica remix - Rick


Não se reprima
Semana passada o mundo foi abalado por uma revelação bombástica. O ex-Menudo Rick Martin saiu do armário e assumiu a sua homossexualidade.
O Menudo era um grupo musical formado por adolescentes e movido por fortes interesses empresariais. Teve várias formações, mas a que fez mais sucesso foi aquela que colidia os érres de Ray, Roy , Robby e Ricky.
A molecada arrebentava a boca do balão. Enlouquecia as moçoilas das três Américas. Rick Martin era o mais novinho da turma, um pré-adolescente que se destacava pelo desembaraço (e, como o futuro ratificaria, pelo fato de cantar de verdade). Com a decadência do grupo, Rick continuou seu rumo na música sozinho e seguiu por este mundo afora conquistando legiões de apaixonadas fãs.
Acho que o cantor construiu uma carreira sólida, tem um público fiel e não acredito que esta declaração venha abalar a sua fama e o seu carisma junto àquelas (e aqueles) que o admiram (pela voz e pelo repertório popular e também por outras e bem desenhadas virtudes), mesmo porque, a sociedade avançou e o preconceito, hoje, é coisa démodé.
Mas o que eu quero falar mesmo, é sobre um caso que houve entre mim e ele, o Rick Matin (calma lá, nada contra, mas não vamos tirar conclusões precipitadas):
Passei um tempo em Rondônia. Só vinha por aqui, de ano em ano. Era um bebê, não tinha nem vinte anos ainda e era demais amamãezado. Morria de saudade de Belém. Chorava, escrevia cartas sentidas, saudosas. Mamãe sabia que eu sofria um tantão sozinho lá pra’quelas bandas. E por isso, bastava eu escrever dizendo que minhas férias estavam marcadas, que mamãe logo se mobilizava. Era muito bacana. Minha mãe juntava os amigos, a família, vizinhos e levava aquela turma animada para me esperar no aeroporto. Era sempre um reencontro prazeroso, emocionado, pleno. Adorava aquilo.
Mas houve uma vez, terceira ou quarta vez que eu vinha de férias, e que eu achava que a coisa já estava meio rotineira, meio sem graça, que a mamãe anunciou uma surpresa. Não insisti em saber do que se tratava. Contive a ansiedade. Mas, conhecendo a mamãe como eu conhecia, podia esperar tudo. Tinha que estar preparado.
Quando eu desembarquei, que eu olhei para aquele horror de gente se apinhando naquele piso superior do aeroporto, Meu deus! tomei um choque. Uma multidão. Centenas de pessoas gritando, acenando, mandando beijinhos e recados. Pensei cá comigo: “égua, dessa vez a mamãe exagerou”. Na época, eu tinha uma namorada que era cabeleireira e a tinha deixado aqui, loura. Lá de baixo, todo metidão, achando que o mundo estava a meus pés, tentava localizar minha pequena no meio da multidão. Nada.
Passei pelo desembarque, peguei minha bagagem e, pera lá, estranhei a frieza e a solidão na saída para o saguão do aeroporto. Ninguém a me esperar. Interpretei que aquilo fazia parte da brincadeira e rumei lá pra cima, para onde estava armado o furdunço. Quando cheguei lá, ninguém me deu ibope, continuavam todos naquela algazarra, olhando em direção a pista de pouso. “Agora eu vi”, refleti, meio frustrado. Enquanto matutava alguém me puxou pelo braço. “Ei! Passasse, me visse, nem falasse”. Era a minha namorada, de cabelo pintado de preto (eis a surpresa, a minha namorada, era agora uma morena que eu mal reconhecia. Se não viesse até mim, passaria duzentas vezes por ela e nem maldava...). “Umbora”, disse ela, “umbora que o Menudo tá chegando e minha irmã tá guardando lugar ali na frente”. E lá fui eu para, sem me reprimir, juntar-me às tietes do Rick Martin que acabara de descer os primeiros degraus da escada do avião que aterrissou logo depois do meu.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

crônica da semana- branca


Branca
Mas olha o que foste revirar, heim, Esse Menino, olha a que te abalaste: cavucar aquelas tardes que se arrastavam cáusticas e quentes, misturando cheiros. De caju, de fumo, de gravetinho tição. Tardes recendendo inocentes desejos. Exalando perdição. Aquelas tardes de rádio de pilha propagando cantigas de amor, rente ao batente da Vigorelli. Tarde de cerzidos e alinhavos. O que foste me trazer de volta, Esse Menino. Pão quentinho e café de cócoras na porta olhando pro tempo. E por uns momentos, olhos sequiosos brechando obras intocáveis, tesouros preciosos, e até mesmo, belezas impuras, pelos chagões e vielas. O que me tornaste a apreciar. A esquina da Lomas e os faróis dos carros luzindo na noite... E para completar, Esse Menino, me vens com aqueles passeios de velocípede Bandeirantes, levando a Branca da dona Odaléia na garupa. Não era a única garota loira da rua, não. Uma outra havia, Esse Menino, mas aquela vizinha era a bonequinha de ouro que levavas com gosto e zelo a conhecer as maravilhas dos frondosos cajueiros alinhados no estirão do cercado de estacas cruas. E era uma viagem longa, cheia de suores nervosos e de medos justificáveis que terminava docemente ao pé da cerca. Que terminava em longos e delituosos arrepios, longos e deliciosos risos e em segredos de contentamento guardados eternamente.
Como longo era, também, Esse Menino, aquele caminho da marcha que começava lá pras bandas do Chaco, passava pelo Paraíso e se dispersava na frente da igreja. Como era longo aquele caminho! Como era descrente a tua marcha e quão desagradável era aquele cerzido que a mãe fez na farda, e que ficava bem à vista do pelotão que honrava a pátria com todo garbo, com todo entusiasmo, e que te seguia, e que, indiscretamente, se divertia a valer, avacalhando aquele rasgadinho da tua roupa cosido num pedalar rápido da Vigorelli.
Mas deixa, ora, em compensação, era branca a tua camisa de renda. Não era a única da rua. Outras haviam. Mas aquela camisa, naquele aniversário te fez bonito, garboso, e tão e tanto, que ficaste parecendo filho de major. Empoado, chuviscado de extrato possante trás-da-orelha, calça de tergal vincada, filme de gumex no cabelo. Tinhas um cerzido ridículo no dorso da tua camisa da aula. Mas a tua camisa de festa rendada te fazia bonito. E Branca te via, não te tirava os olhos, te arrodeava, te mexia, te beliscava. Te oferecia brigadeiro a toda hora. Insistia. Chega até caiu um pouquinho do doce na tua camisa, bem aqui, do lado certo do coração. A camisa de renda...A bonequinha doirada, filha da dona Odaléia queria, Esse Menino. Queria porque queria, naquela festa de aniversário, dar uma volta na garupa do teu velocípede, até bem pra’li, na fronteira de estacas ferpadas, dos quintais. Queria te segredar intenções e te prometer uma paixão para sempre.
Branca, bela Branca. E nem é tão longe aquela pisada do Chaco até a Barão. Mas naquele tempo, Esse Menino, na marcha, puxando pelotão dos uniformizados. Com uma responsabilidade pesando no dorso rasgadinho. Sem luvas, sem laços verde-amarelos, sem patrióticos cata-ventos. Naquele tempo em que os rumores doíam mais que a realidade porque eram densos, vis, torturantes; naquele tempo em que os soldados valentes e gentis exibiam a sola dos coturnos na nossa cara, naquele tempo, aquele era um caminho que parecia não acabar nunca.
Caminhos indeléveis, Esse Menino, como a lembrança desbragada daquelas tardes. Daquele estirão percorrido pelo teu velocípede, que jamais se esgota na memória (trazendo atracada em ti, a bela Branca da dona Odaléia).

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

crônica remix -diálogo


Diálogo
- Eu sei que dizem por aí que a minha vida é tesourar, mas eu não tô nem vendo. Olha, mana, meus filhos já estão criados. A minha casa está arrumadinha, a roupa lavada e engomada, o jantar tá pronto. Eu é que não vou ficar enfurnada dentro de casa. Deu de tardezinha, ponho a cadeira na calçada e fico apreciando o movimento. Olha, olha, tás vendo? Tás vendo? Não é querer falar mal da vida de ninguém, mas aquela ali não é mais moça. Espia, espia aqui nessa parte, tás vendo? Não une. Conheço só pelo andar, maninha. A mãe coitada, acha que ela é uma santa. Mas tá, cheirosa! Pra cima de moá! Conheço. Só pelo andar. E lá vai Flor. Olha, mana, tô te falando. Quero que um raio me cegue se eu estiver inventando, mas a Flor tá enfeitando a cabeça do marido. O pobre tá que não entra mais em casa de tão espaçoso que tá (aqui na testa). Um homem tão bom! Mas é assim mesmo, mulher não dá valor a homem muito manso. Mas aquela ali não é Verinha? Eu quero cair durinha com doze facadas, se eu estiver enganada, mas é certeza que Verinha está grávida. Tô sabendo que tá de partida pra São Caetano. Vai pra lá, pra ninguém saber. Mas não adianta esconder. Menina nova com aquela cara pálida de doente, eu já sei: emprenhou. Mas também, égua da pequena foguenta. Vivia aqui em casa atrás do meu menino. A mãe num desespero só. Dizia até que eu acoitava. Eu avisava: prenda a sua cabra que o meu bode tá solto. A mulher fez porque fez, que os dois se desencegueiraram. Num adiantou. Olhaí. Não se perdeu com este aqui, se perdeu com outro que ninguém nem conhece. Eu vou te contar essa, mas pelo amor de Deus, não conta pra ninguém: Dica está com uma doença feia. Era uma bifede que ela tinha na orelha. Passou pra dentro do ouvido e furou o tímpano. Infeccionou. Anda pra cima e pra baixo, tomando tudo quanto é remédio, e a inflamação, nada. Dizem que foi um trabalho pra ela deixar do marido. Coisa braba, mana. Axi, lá vem a ricaça. Pensa que eu não sei. Toda emperiquitada, nariz empinado, mas tá pior do que a gente. Verdade, mana, por essa luz que me alumia. Anda toda emplastada de maquilagem, cheia dos michelini, mas tá no fundo do poço. Dizem até que vão vender a casa da Arterial, pra pagar dívidas. Tu viste este que desceu do carro verde? É o caso da Dora. Dizque é cheio da grana. Ele chega uma horinha dessa e larga só lá pra de noitinha. É casado, com certeza. Agora a verdade seja dita, ele faz todas as vontades dela, mas tá certo, comendo da fruta todo dia, o homem tem mais é de ficar mão aberta mesmo. Na casa dela tem de tudo em quanto e do bom e do melhor. Ele vai até mandar reformar a casa. E o Silva, menina! Todo de carro novo. Eu vou te contar, não sei onde esse povo arruma tanto dinheiro. Um homem que não tem nem o ginásio, menina, com um casarão desse, um mulherão, que é a Margarida (e ele que ainda é feio que dói ), e festa todo fim de semana. E a gente só aqui, sentindo o cheirinho do churrasco. Pra mim é trambicagem das boas. Olha, menina, eu vivo a minha vidinha aqui com os meus filhos. Eles não me trazem problema. Mas aqueles mau elementos ali da esquina, eu heim! Eu já armei o meu pé-de-cá-te-espera pr’eles. Cuidado, eles têm mau-costume. Aquela televisão deles, hum hum, se me perguntarem eu digo como eles conseguiram. Não sou baú. E não é só isso (ôxa! ), e esse povo de carro que vive batendo na porta deles (ai meu pai! ), uns bacanas arrumadinhos (mas que coisa chata! ). Pra mim ali é um ponto. Argh, como é que a gente fala pra gato, mesmo?
- Sap, bichano!
- Sap, gato!    
 

sábado, 1 de setembro de 2012

crônica da semana- escalda pés


Escalda-pés
Tal qual o personagem do Dalcídio, também errei de classe, uma vez. Foi na oitava série. Não sei por que cargas d’água, faltei uns quantos dias, no início do ano letivo e, como vinha numa sequência de aulas à tarde, no retorno me meti numa sala e por lá fiquei bestando. E ainda todo cheio de razão, reclamando com os professores porque meu nome não constava na chamada. Lerdeza mesmo. Estava matriculado no turno da manhã.
Quando varei na minha turma de verdade, estava mais perdido que guarda da Ctbel no BRT. E foi exato no dia de uma aula estranha que pensei ser Biologia. A professora mostrava uns desenhos do sistema respiratório. Falava do caminho que o ar fazia dentro da gente, da posição da língua, mostrava a arcada dentária. Para mim, aquela aula era de Ciências.
Que nada. Era de Português. Caramba! Morria e não sabia que aquilo era um viés da Fonética. E quando soube, olha, olha, foi um custo quedar-me à razão. Para eu me entender com os sassaricos da língua entre os dentes, com os estalos do palato e com o caráter fricativo alveolar vozeado do zê, foi uma briga com os meus paradigmas, um embate com os meus inconformismos, uma queda de braço com as minhas crenças. Mas passou. E fiz uma oitava série de muito aprendizado com a professora Cleide Nascimento e de momentos muito prazerosos com um feixe de coleguinhas fantásticos dentre eles, as minhas paixões Eduardo Figueira de Farias Neto e Alba Maria de Sousa Thomás (e por falar em saudade, onde andam vocês?).
Depois dessa, não cometi mais furos tão desatinados. Dei de observar, assuntar, perguntar as coisas, pra não me perder nas primeiras manhãs, no mundo e no prumo.
E olha que este mundo, heim, é expedito, dá voltas que nos deixam azuruotes, tontos de perder o rumo. O mundo, já diz a sabedoria do interlã, ‘mundia’. Faz de um tudo pra gente errar de classe e emboletar as leis e ciências. Aí dá o piti, rola o estresse, um chiliquito ensaia te derrubar. O rubor cresce na face, as’urelhas esquentam, um ligeiro tremor nas mãos precede a sudorese, o espanto te faz gritar, a agonia emerge fremente. Não sei por que cargas d’água, às vezes parece que a gente tá se perdendo na oitava série.
Aí, a gente corre para o escalda-pés. É um santo remédio. Cura tudo. Até lerdeza.
O pé tem 26 ossos. Cento e poucos ligamentos. Trinta e tantas articulações. Uma ruma de músculos e algumas milhares de terminações nervosas que se comunicam com todo o nosso corpo. O pé sabe muito da gente. É a parte do corpo que reclama quando a coisa tá desandando (com perdão do trocadilho). Diz logo que não tá satisfeito. Da mesma forma, quando aliviado, leva a comodidade e o conforto para as fronteiras litisconsortes do nosso organismo.
Para males e apreensões, o escalda-pés cai bem. Água morninha, uma essência, algumas ervas, uma pitada de paciência. Ou somente águ’e sal. Mamãe dizia que um pé mergulhado com fé “tira essa coisas ruins tudinha da gente”.
(Sabe, um dia desses, mudei minha rotina. Vi-me numa situação, como se fosse aquele primeiro dia atrapalhado de aula do Alfredo, personagem do romance Primeira Manhã, do nosso grande Dalcídio Jurandir. Ou mesmo, parecida com aqueles meus dias perdidos na oitava série B, da tarde, no colégio Jarbas Passarinho. Éraste! Me vi aperreado. Parece que todo mundo me mexia, me pilheriava, me zoneava. Era como se falassem “ei, bestão, tás na sala errada”. Mas ora, se não me aviei. Quando cheguei em casa, pus a água pra esquentar, enchi uma baciinha, sentei numa cadeirinha baixa, fiz um escalda-pés e meio vergado para o futuro, me desemboletei de algumas ciências e leis).