O presente
Ver-o-Peso. Três da tarde. O sol botando pra ferver. Uma nuvem de fumaça maldosa paira sobre as cabeças e martiriza narizes e pulmões. Ali no abafado escaninho histórico, Belém é desvairado movimento.
O homem aproveita a folga no trabalho e providencia aquele mato cheiroso para banhos descongestionantes. Ele é trabalhador do comércio varejista. Corre contra o tempo. Já já é hora de voltar aos clientes.
Sua em bicas. É o efeito de tresloucados movimentos. Atravessa a rua, acelera o passo. Ali, do outro lado da feira, barracas mal armadas fazem frente a empórios e armazéns seculares.
Tem o passo apressado e distingue ritmadamente os produtos expostos ali. Cantarola uma canção cadenciada por tabuleiros e prateleiras. Tem o passo apressado. Passam redes franjadas. Passam baldes coloridos e bacias de alumínio. Passa o pote altaneiro e a bilha modestíssima. Passam as sandálias de couro cru. Passa a loja de umbanda e o índio de gesso a te olhar. Tem o passo apressado. Passa a casa de fechaduras e cadeados. Passa a Ocidental do Mercado. Passa o portão do prédio de ferro. Tem o passo apressado. Passam os espelhos artesanais, as peças de elástico, os montes de ‘canforina’, as panelas de alça. O Candeeiro. Candeeiro? O homem desacelera o passo.
Naquele instante, inerte, o homem sente um desejo fulminante, voraz. Uma vontade subversiva de ter um candeeiro.
Nós, os comuns, mergulhados na rotinização dos deleites, entendemos pouco um desejo tão alucinante. Mas há o justo motivo para o comerciário. Há motivos para todos nós. Todos ansiamos por um candeeiro. Não percebemos, não nos entregamos arrebatadoramente a esta vontade como o homem ali no Ver-o-Peso. Mas, efetivamente, o candeeiro cativa as simpatias de todo homem comum. É a vontade mais discreta a percolar o inconsciente coletivo. Eu, tu, ele, não nos damos conta, mas cobiçamos sutilmente a posse de singelo e delicado candeeiro.
Talvez pela construção do vocábulo com um dê super responsável a equilibrar os audaciosos és, numa belíssima acrobacia da língua. Ou pelo objeto em si: peça estética e quase sagrada ao emanar a chama beneficente.
Por causa do êxtase manifestado pelo cidadão e mesmo pelos justos motivos que encontramos pelo caminho, ainda não dá para sair por aí comprando tudo quanto é candeeiro exposto no Ver-o-Peso, mas é um caso a se pensar. A felicidade do homem em ter um candeeiro só seu, nos diz que vale a pena...Naquela mesma noite o homem confidencia à mulher o seu comichão por causa do candeeiro. Há um vazio naquela casa, ambos sentem isso. Não dormem direito. Não são felizes, falta-lhes um candeeiro.
A mulher não se apoquentou. Conteve-se. Mas precisava agir para salvar seu casamento. Para trazer de volta o brilho aos olhos do seu companheiro. Um belo dia pegou as crianças, catou a féria semanal da costura e foi bater no Ver-o-Peso. Preparava uma surpresa para o domingo...
O almoço, especial. As cervejinhas do papai, geladinhas. Uma música de ocasião. Feliz dia dos pais, diz a mulher entregando-lhe um embrulho um tanto quanto delator. O homem já adivinhava o que vinha por ali. Abriu o presente e emocionou-se. Obrigado! Agora eu tenho um candeeiro. Abraça os filhos, feliz. Volta-se a mulher e beija-lhe a face. Um beijo com a força da luz que emana sagrada, de num canto da casa.
Seu Raimundo, pra continuar no clima de cheiros que o Ver-o-peso proporciona, passe lá no meu blog e veja a tangerina que pintei.
ResponderExcluiraquarelaenanquim.blogspot.com
Um abraço
Artur Dias
Romântico este candeeiro. Tinha me esquecido de quão é imprescindível na vida ter este candeeiro do Sodré. Mas só vale se for este! Carregado de significados ocultos e vontades reprimidas; cheio de calor e luz que vão além do ambiente onde está num canto qualquer. Mas que doidivanas sou eu? O candeeiro "sodresiano" está aqui, à espera de alguém para materializá-lo.
ResponderExcluirO candeeiro sodresiano, como prefere o "anônimo", me fez lembrar o filme "Palhaço", com, e, de Selton Melo, em meio à busca por um ventilador. É a materialização da palavra lavrada (palavrada) que se vê no filme e vice-versa. Paresque o Selton Melo escreveu este texto, em busca do Candeeiro, e o Sodré dirigiu aquele filme, em busca do ventilador. Uma combinação benzida (ou benta...) aos artistas das palavras e da sétima arte.
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