domingo, 21 de dezembro de 2025

crônica da semana - aí vareia

 Aí ‘vareia’, né papai Noel

Pelo comum, papai Noel passava longe de casa. Errava o caminho, esquecia de entrar nos escondidinhos em que morávamos, ou mesmo não me incluía na lista. Tinha lá seus rígidos critérios para classificar um menino bonzinho durante o ano e eu, com aquele costume suspeito de apanhar camapu no quintal de quando em quando, não representava coisa boa não. Papai Noel, na certa, sabia das descobertas pueris que rolavam entre as ‘cercas embandeiradas’ que separavam nossos quintais.

De contar nos dedos, as vezes que, por uma forra, me achou. Certa ocasião, inspirado pela propaganda ufanista que grassava por este Brasil varonil, e explorando o sentimento da pátria amada ‘ame-a ou deixe-a’, o bom velhinho achou por bem quedar-se aos signos militares e deixou sobre meu par de botas cor de gelo que serenou a noite toda no beiral da janela, um kit completo com arremedos de acessórios militares. O que se deu foi que nem bem despertei, assumi a minha versão o pessiminho da ditadura, me montei nos equipamentos e infernizei o dia, de apito na boca tocando o barulho, cassetetando a canela de quem se aproximava, enlouquecendo a vizinhança com disparos do meu revólver de espoleta barulhento e também, aferindo a resistência do meu capacete, cabeceando a vigas sem reboco da construção vizinha, em combates e fugas imaginárias. Foi um presente de Natal que marcou a minha vida pelo grau de rejeição alcançado com minhas brincadeiras sem graça em homenagem a um regime que à época torturava, sumia, violentava o povo brasileiro. A propaganda nos cegava, nos envolvia, as crianças, os pais... nos alienava. Ainda bem que nos libertamos e não mais papai Noel reincidiu na doutrina. Graças!

Passou, passou, a situação ficou foi vasqueira pro papai Noel. O reflexo da ditadura, sentíamos no arroxo, no aperreio diário da carestia, na certeza de que havia um rico bolo impossível de ser dividido. E na presença sempre inquietante do medo. Só anos depois, minha janela, desta feita abrigando meus chinelinhos roídos em meia lua, foi visitada pelo velhinho. Já havíamos mudado de endereço algumas vezes porque os aluguéis estavam por acolá e a gente só no espremido de grana para sobreviver, pirangava aqui e ali uma morada mais em conta para uma família que somava onze pessoas. A Imprecisão no endereço talvez  teria sido mais um motivo para Noel me largar por uns tempos. Imagino que muita criança recebeu presente nos endereços largados para trás, em meu lugar. Fomos bater na parte não asfaltada da Pedro Miranda. Domiciliado por tempo recorde, encontrável, ganhei uma bola Rivelino. A rua traçada em leito de piçarra era o campo de jogo para estrear a pelota.

Quite. Plena preguicinha silenciosa do dia de Natal, a rua toda nossa e a molecada não apareceu. Havia um motivo. A patota desceu pro campinho de serragem que resistia entre os igarapés da Pirajá. A bola do jogo lá era a desejada Dente-de-leite. Sutilmente fui deixado no vácuo com minha bola Rivelino. Apenas um garoto, daqueles que jogavam de bermuda e chinelos entre os dedos das mãos, se dispôs a brincar comigo. Fizemos um gol a gol. Dei-lhe uma pisa. No meio da competição, ainda perguntei por que ele não conseguia agarrar meus chutes que nem fortes eram. É que essa bola Rivelino ‘vareia’ muito, respondeu meio que justificando a decisão da turma de ir brincar em outra freguesia. Foi um custo pro papai Noel me achar. Quando achou, me trouxe uma bola de trajetória instável, nem de longe lembrava a Dente-de-leite que até para remendar com faca quente era melhor.

Passados uns dias, depois de um chute variado, uma folha de zinco golpeou a minha bola. Não teve salvação. Bandei a bichinha e doei as partes para futuras emendas.

Nos tempos seguintes, papai Noel continuou na mesma batidinha. Me perdia, me achava, e por vezes, ainda que eu me apresentasse como um menino bonzinho, não me incluía na lista (Ah, o camapu!).

 

sábado, 13 de dezembro de 2025

crônica da semana - como diz o outro

 Como diz o outro

No início de 1989, Altamira, no Pará, foi movimentada pelo “Primeiro Encontro dos povos Indígenas do Xingu”. Eu estava lá. Foi naquela ocasião que conheci o Ailton Krenak. Quer dizer, de ver assim de palmo em cima, não vi não, mas tive acesso aos registros dele em fitas VHS que pintavam por lá, com destaque para aquele discurso na tribuna do plenário, em que ele pinta o rosto e define a questão indígena como pauta fundamental para o Congresso Constituinte.

(Eu era, como diz o outro, a contradição dita e desdita ali naquela beira do Xingu. O nosso pedaço amazônico aqui estava era convulsionado. Conflitos no campo se avolumavam e a violência silenciara, no final no ano anterior, o deputado João Batista, no Pará. No Acre a estrela Chico Mendes perdera o brilho também, às vésperas do Natal de 1988. A bacia do Xingu chamava a atenção do mundo por causa dos avanços para a construção da maior hidrelétrica 100% nacional do Brasil. Quando em fevereiro as nações indígenas se reuniram em Altamira, o clima estava pra lá de tenso. Havia uma fração da população bastante mobilizada no combate à construção da barragem. Durante o encontro e um bom tempo além, muitas manifestações se realizaram, muitos debates foram articulados exigindo a paralisação dos estudos e, depois, da construção. Em tudo quanto era manifestação eu estava. Uma indisciplina corporativa, uma negação de causa, já que eu trabalhava no projeto. Mas, como diz o outro, perdido por um, perdido por dez. Eu tinha lá minhas broncas com o modelo capitalista predador e depredador dominante naquele empreendimento. Isso me custou. Peguei um gelo daqueles, durante a mobilização indígena. Me deixaram de castigo no campo. A vuca fervendo em Altamira e eu exilado no acampamento uns bons 50km de distância, contados pela, à época daquele inverno amazônico e ainda assim hoje, lamacenta e desafiadora rodovia Transamazônica. Por isso não vi o Krenak. Quando me anistiaram, já foi no finzinho do movimento. Tuíre já havia plainado seu facão, e o encontro institucional fora encerrado. Pela cidade resistiam ainda a lenda Sting, uns globais, muitos gringos ditos renitentes ecologistas, jornalistas do mundo todo e alguns poucos grupos Kaiapó daqui e dacolá do alto Xingu).

Mas, como diz o outro, pra encurtar a história, depois daqueles anos fui prestar reparo e ter a chance de ver de perto o Ailton Krenak, além de ativista incansável, agora escritor premiado e imortal da ABL, na edição deste ano do Festival LED: Luz na Educação. E aí sim, fiquei bem confronte dele.

Como diz o outro, fiquei bestinha da silva de ver como a gente faz um juízo, e a pessoa, na real, é outra coisa, outro espírito.

Tinha na minha cabeça, um Krenak concentrado, sisudo, como se estivesse sempre pintando o rosto com jenipapo e dando um ralho federal na malta de políticos de Brasília. Mas quando! Fez um bate-papo com uma platéia atenta, entusiasmada, na maior descontração, animado, brincalhão, riso fácil. Atencioso, percebeu que pela disposição das cadeiras no palco, ficava de costas para uma parte do público, pediu o apoio da mediadora, e toda vez que usava a palavra, girava a cadeira e se dirigia também, ao povo do cantinho. Um fofo!

Devo notar que a organização do Movimento LED este ano, deu show e, ao contrário do ano passado, consegui, sem fila, o acesso para várias mesas. Fiz uma agenda para ver o Krenak e o professor Carlos Nobre, mas surgiu a vaga e acabei acompanhando pela manhã, o papo com a Fafá de Belém. Em um dos momentos da participação dela, a artista marcou a fala com a expressão “como diz o outro”. Usou um suporte de discurso antigo, já em desuso, que me levou lá longe às tardes nas calçadas da Pedreira, com minha mãe, minha avó, apreciando o movimento da rua e contando causos, enquanto eu pirilampava por perto, como diz o outro, só na mutuca, só prestando atenção, guardando lembranças... 

 

sábado, 6 de dezembro de 2025

crõnica da semana - chuva de granito

 Chuva de granito

Já pensou uma chuva de pedras na cabeça da gente?

Há algum tempo, revelei aqui um dos meus imperdoáveis pecados, de tal forma imprudente, que até hoje me consome. Tá legal, tem o desconto que eu era um estagiário iludido, deslocado da cidade grande para os sertões de Rondônia, um técnico de nível médio metidão com o status, além de peão um tantinho, que a carreira me oferecia. E que operava com os conhecimentos importantes, porém básicos, adquiridos no curso da Escola Técnica. A vítima foi um membro da equipe que se destacava como líder de campo. Em um dos relatórios, nos apresentou uma amostra e se referia a ela como sendo de ‘rochas graníticas’. Presunçoso, fiz a correção. Não reconhecia denominação generalista como aquela. Conhecia sim, uma rocha chamada granito e era esta, específica, a notação que ele deveria usar. Um erro bruto, pétreo.

Mais tarde, bem além dos meus tempos de estagiário, já na Universidade, me aprofundei e constatei que existe realmente um grupo de ‘rochas graníticas’ que têm gradação mineralógica e conforme a proporcionalidade entre os minerais recebe, aí sim, um nome específico. Um deles, granito. Então, tentando a remissão, mando um ralho para o estagiário cabeça-dura que fui: dentre as rochas graníticas, que são parecidas visualmente, uma das composições é o granito. Varia a composição, ganha outro nome. O nosso líder, lá em Rondônia estava era certo. E eu era um bestão querendo ser o que a folhinha dos anos 80 nem ensaiava.

O tal granito é uma rocha constituída de três minerais principais. Quartzo que atualmente encabeça as tecnologias de fibra ótica, além de se travestir no nosso querido copo de cerveja; o feldspato, pouco conhecido por nós aqui do norte chuvoso, mas que é o príncipe do universo mineral; e a mica, que tem a forma de placas e que pode ser encontrada nas nossas lembranças como uma pecinha encaixada dentro dos ferros de engomar de antes (não sei agora, nunca mais esbandalhei um ferro pra ver o que tem dentro e, diga-se, uso muito pouco o ferro de passar. Sou da turma dos amassadinhos). Todos com densidade ali, ali, beirando o triplo da densidade da água.

Uma chuva de granito seria mina de pedrinhas mais pesadas que a água, caindo no nosso cocuruto.

Minha avó contava que lá no Acre, tinha presenciado uma chuva de peixes. Pelo sim do conto e o não do contado, entendia aquele trancoso como intimidação, história pra dormir aos ‘arrupios’. Com o tempo, observando a formação de trombas d’água, reconheço ser até possível um ou outro peixinho despencar das nuvens. Agora, granito! Nananina.

Pior que é comum a gente se referir às chuvas de ‘granizo’, aquelas que vêm com pedrinhas de gelo, como sendo de ‘granito’. Às vezes por impulso, distração, troca simples de consoantes e até convicção (sem provas). Vai da situação. Confusãozinha feita principalmente pela nossa gente daqui, do norte, pouco acostumada a este tipo de precipitação (Na minha vida, só vi uma aqui em Belém e outra em Rondônia. Nas duas, saí pra rua, menino péssimo e sem medo que era, para catar as pelotinhas de gelo).

Não é raro o atropelo na pronúncia e também na escrita.  Fenômeno da língua identificado como paronímia. São aqueles deslizes provocados por palavras parecidas. Eu tenho pavor de uma penca delas. Sempre me traem. Óbidos e óbito. Comprimento, cumprimento. Para aludir à palavra tráfego, paro diante do semáforo e penso antes de seguir, para não desviar para o tráfico. De emigrante e imigrante, nem falo nada. É bom não dar asas para esses destinos.

Recentemente, nuvens densas e agigantadas provocaram chuvas de granizo no sul do país. Com intensidade potencializada certamente pelo aquecimento global.

Dias depois, topei com um vídeo na internet em que uma especialista em ‘assuntos de tudo em quanto’ afirmava que aquela chuva destruidora fora fabricada pelos comunistas. Fosse chuva de granito, eu até acreditaria.  

 

 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

crônica da semana - nota nove e uns caroços

 Nota nove e uns caroços

Em duas oportunidades na vida fui convidado para fazer parte de um corpo de jurados. As duas em competições de músicas. Pra nunca mais. Não tenho o pendor de julgar, reconheço. 

Noto ainda que além da frágil, e reiteradamente passional, elaboração de critérios ou de leituras substanciosas das obras e apresentações, quando calha d’eu ser justo e qualificar direitinho as intenções, peco nas medições. Me tenho por demais analítico nas notas. Num concurso, em especial, pus a turma da apuração em desconfortável encalacre. Minhas notas foram todas quebradinhas, minha composição decimal tendia ao infinito. Para um, dei 8,347; já para aquela, a nota foi 7,843. Aquel’outro mereceu 9,769. Não sei qual entidade cartesiana baixava em mim. As minhas notas tinham valores enes tais além da vírgula, que se alinhavam à desmesurada configuração do valor de pi. O que se via na hora do resultado era um nervoso digitar na calculadora dos celulares. Continha chata que dava recálculo, gerava insegurança. Lá do meu lugar na banca, tomando aquela aguinha que passarinho não bebe (minha exigência para compor o plantel) atinava para os olhares de incontida ira dirigidos a mim. Era a escolha de uma marchinha de carnaval para o um bloco, formado por animados estudantes universitários e agregados, que acontecia já na concentração e em meio à pândega própria da época. Tinha um espírito despojado, lúdico, dispensava perfeitamente aquela sisudez, aquela tensão toda para a obtenção de uma nota (que poderia contemplar qualquer uma das marchinhas inscritas, afinal, todas comporiam o repertório do bloco dali por diante). Depois daquele dia, lição dada, lição apreendida. Não mais me convidaram e eu também, quite que me enxeri.

Embora tenha feito a autocrítica. Revisto conceitos. Ativado mecanismos mais ágeis e compensadores de atenção e compreensão, recaí.

Detalhezinhos decimais me servem agora para meter o bedelho, me inserir no bloco de avaliadores mis que grassam emitindo notas e pesos aos vários desafios assumidos por Belém para a realização da COP30.

Além da vírgula, embarco na turma que viu a COP como um jogo de futebol ou um show para multidões. Mando um número quebradinho, mas ali no rumo do 10. É claro que embalado pelo forte apelo midiático local, pela valorização das nossas riquezas culturais e ainda em favor da resistência, da resposta que a cidade deu para as pssicas liminarmente disparadas. Ainda sobre este apanhado, ressalto que uma nota alta se justifica pelo engajamento da população. Todo o fuzuê em torno da COP trouxe para a cena também os moradores da região. E isso foi muito positivo. Tanto para o cidadão conhecer melhor o lugar que mora e se reconhecer neste espaço (com seus problemas, suas belezas, sua história) como também para se inserir, se aliar aos movimentos de reflexão, de reivindicação, de elaboração de propostas e condutas em favor do planeta. À exemplo, na prática, testemunho que  saí deste transe comunitário decidido a reagir à mentira que vivenciamos com relação à coleta de lixo. Implementamos, aqui em casa, uma outra estratégia para o descarte de resíduos gerados, já que a coleta realizada hoje desacredita o sistema, mistura tudo e inviabiliza o manuseio seguro do material coletado. Diante do entusiasmo circunstante, as falas que pregam comportamentos sustentáveis foram amplificadas, tocaram os corações e provocaram mudanças de hábitos em muita gente, imagino. Baseado nas declarações oficiais, volto ao picadinho dos números e banco a nota 9 e uns caroços para o conjunto da obra. Pena é que concretamente, a conferência avançou muito pouco com relação a pautas decisivas. Transição energética, redução na geração de CO2, compromissos com biomas foram travados. O nove inteiro, uma excelente nota para o pacote Belém, foi ressiginificado e confinado sob gases estufa. Ficando a salvação do planeta, com os caroços decimais.

sábado, 22 de novembro de 2025

crônica da semana - sandalhada à milanesa

 Sandalhada à milanesa

Conheci um camarada que, quando viajava, passava a pão doce e um tubo de Redoxon. Isso para mim diz muito sobre potência e resistência, e também sobre superações e fraquezas. O camarada sabia dosar graminha por graminha, a efervescência dos seus ímpetos. Alerta também que a gente não deve sair por aí querendo ser o que a folhinha do ano não marca.

Eu sou dessa linha. Procuro o equilíbrio.

Quando a gente se abala a conhecer outros lugares, já deve ir preparado. Admitir que não tem as manhas dali. Dar umas passadas adiante, marcar passo, avaliar e corrigir curso. Senão, acaba a grana e a gente fica na pira.

Uma das minhas viagens de maior sucesso em controle de gastos foi para Gramado. A cidade é tida e havida como um dos destinos mais caros no Brasil. Tem fama, tem atrativos; a novidade do frio e, com sorte, da neve.

Tem que se enturmar com as gentes da região. Do jeito que fazíamos nos anos 80, quando partíamos pra Algodoal ou paraísos ainda pouco conhecidos na região do salgado paraense só com um contado para as mais básicas precisões e para tudo quanto os outros tantos, somente o charme e a cara de pidão, atributos com os quais contávamos para conquistar a generosidade dos pescadores. Se não, nos conformávamos às dádivas da natureza em abrigos nos escaninhos das dunas e nos quentinhos das fogueiras na areia, alimentados a punhados de estrelas e brisas fresquinhas.

Já lá pras bandas de Gramado, a estratégia teve poucas alterações de caráter e definições. Nos primeiros dias, o jeito foi encarar a onda. O movimento na cidade se concentra em grande parte ali pelo centro, nos entornos da Rua Coberta e do Palácio dos Festivais. Por aquela região, se a gente tivesse que gravar um vídeo reclamando dos preços, não haveria gigabytes que suportasse em tamanho e foco. É tudo lá nas alturas. Da garrafinha de água ao fondue. Respeitando as correções monetárias, diria que nos primeiros dias, deixamos no caixa dos restaurantes algo perto de 60 Reais. Isso para uma refeição substanciosa por dia. Pela regra, só almoçávamos. À noite nos valíamos da graça do Senhor, da desculpa do frio e de um pãozinho torrado com café (coisa pouca além do redoxon). Ali pelo terceiro dia a bom bater perna, indagando aqui e ali, descobrimos um restaurante a quilo. Caiu pela metade nosso custo, deu até para acrescentar uma sopa no jantar. Do meio pro fim a gente já estava era dividindo uma marmita de 10 contos. Esticamos o passeio até Canela, que é cidade ao pegado, e lá encontramos outro restaurante bem mais em conta. Fazíamos o roteiro, na volta, montávamos uma bem sortida marmita e levávamos pra comer no hostel. Dava pra dois e ainda sobrava. Tô dizendo que tem que saber das manhas! (armoleca num sabe).

Mas não vamos longe. Aqui em Belém mesmo, fizemos um circuito cultural no domingo tudo no raso e espremido da grana. Só nos deslocamos de ônibus, de grátis. Embora demore uma eternidade, o fato da gente não pagar, nos permite baldeações. Então, pega-se o primeiro que passa. Quando calha de baldearmos, baldeamos. De água, nos servimos nos prédios e museus que visitamos ou nos bebedouros instalados pelas docas da Guajará. Na hora do almoço foi que o bagulho pegou. Os preços estavam por acolá. Mas mesmo se nos quedássemos a uma extravagância, quando que dava pra quem queria! Não encontramos um único lugar vago nos restaurantes. Fila em todos. O Veropa também estava que só passava a brisa mesmo e aquecida também de calor humano. Pegamos um ônibus e a bom baldear. Ao pegado do centro, encontramos um bar que servia refeição com preço fixo, guarnição à vontade. Minha companheira se adiantou nas escolhas. Quando voltou, veio equilibrando uma sandalhada de peixe à milanesa. Uma posta deste tamanho dominando a guarnição, e que passava da borda do prato. Logo que piranguei e nem fui ajeitar prato só pra mim. Deu pra nós dois. Eita domingo do liso. Só na manha.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

tributo

 

A sete palmos sob o chão

Repousa o corpo mutilado da natureza

A deusa morta

Vultos em desespero bailam a sua volta

E entoam cantos e rezas

O bêbado sonhador dorme sobre seu corpo estático

E voa até o silêncio dos campos verdejantes

Revivendo a história

Apega-se ao mar moleque

Voa com os pássaros em direção ao sol

Rasteja-se com os répteis milenares

Sacia-se da fome e da sede por dádivas da mãe

O vento revolve os seus trapos

Correndo por todo o corpo

É livre, forte e belo

Até emudecer diante dos predadores, das dores

Transborda de humilhação

Cambaleia ante os punhos armados e dorme

Para que mãos reluzentes o despertem

Sobre as cinzas do seu corpo mutilado de futuro

sábado, 15 de novembro de 2025

rônica da semana - floresta em pé

 Floresta em pé

Numa viagem de avião, em trecho curto que seja, ou mesmo de barco, carro, quando a gente se adianta nos interiores, além das ocupações urbanas, logo a gente dá com a floresta. É aquela imensidão verde. Uma incrível composição biodiversa que, saindo do perímetro geográfico amazônico, a gente não vê em parte mais nenhuma do Brasil. É a dita floresta em pé. Ativa. Evapotranspirando. Produzindo vida e harmonizando o planeta.

O que se admite e a causa que nos leva à luta, é manter árvore em pé. E quando a gente se depara com a situação inversa, com mina de árvores deitadas ao chão, desanimadas e secas, nossas motivações ganham além do caráter ambiental, uma alta dosagem de estimulantes emocionais...

(O quadro era uma menção ao horror. Uma parecência com algum tipo de inferno tormentoso e triste. Um ajuntamento caótico de troncos, raízes, galhos, testemunhos de frutos e flores, uns sobre os outros, imprensados num segmento do vale. Quando dei com aquele panorama, senti o coração apertado, o fôlego sufocado, as vistas entregues à umidade, ao lamento. Era uma área que havia sido desmatada para a atividade de exploração imediata.

Para mim, não era comum topar com estas cenas. Atuava muito na pesquisa, fazia a geologia pioneira, era linha de frente. Entre mim e as minas instaladas havia uma longa distância e enfileirados processos. Esta fase intermediária entre a pesquisa e a extração que exige preparação de área, supressão, infra-estrutura, montagem, experimentei dessa vez no aproveitamento de reserva no leito do igarapé, e uma outra, em terra firme.

São choques diferentes. Quando as interferências acontecem nas calhas dos cursos d’água, a gente sofre o impacto, sente o golpe de tantas árvores abatidas e empilhadas desordenadamente, mas ainda se localiza espacialmente, tem a referência alto/baixo do relevo marcando as drenagens. Se retirada a mata desfalecida do leito, na fase de limpeza, ainda assim a gente se encontra no mundo.

Agora quando na encosta, em terra firme, é mais impactante. Uma sensação de esvaziamento, uma visão delirante, desestabilizante, desnortente nos abate. Parece que a gente é um pontinho perdido no meio do nada. Foi o que aconteceu quando me vi atravessando as fases e cheguei até o processo de montagem de uma planta em Rondônia. Fiz a geologia de detalhe, medições, potenciais e viabilidade. Depois, calhou de me pegaram para as demarcações topográficas. Era ainda tudo na mata em pé. Todos os dias eu adentrava a área. Tinha meus controles, picadas mapeadas, direções e sentidos identificados, piquetes e marcos de apoio.  Eu me virava por ali indo e vindo, fazendo varações, escolhendo caminhos, a mata em pé dando as dicas. Sempre referenciado. Tudo marcadinho, entreguei para a turma da operação, mudei de área e passei para outras atividades. Com um tempo, voltei. Dei com o puro limpo. Nem os marcos resistiram à fúria dos tratores. Eu não reconhecia mais aquele lugar. Era só descampado e céu. Uma desoladora visão das ausências, dos débitos, das culpas. Eu me senti um pontinho desorientado).

Naquela época, quarenta e tantos anos atrás, penso que não havia os controles que hoje regulam a atividade de exploração. Pelo menos a nós na linha de frente não nos eram repassadas regras ou compromissos ambientais. Sei que as árvores retiradas não eram queimadas (Agora, em tempos recentes, descobri que havia uma turma que arranjava um jeito de lucrar com as árvores retiradas na limpeza, realizando contratos irregulares com madeireiras. Esta é a revelação que me pega em atraso, por operar à época, tocado por inocências e romantismo. Não maldava).

São duas experiências que pautam minhas reflexões até hoje. As árvores caídas empilhadas confusamente entre barrancos e o solo nu sem uma única cintilação de vida. Lembranças duras, mas que ao menos justificam agora, a defesa do incomparável valor que tem a floresta.