Falando sozinho
Há
situações que nos pegam sem jeito. Nos atravessam no repente e nos impõem
reações inesperadas.
Como
aquela na saída do aeroporto de Belém quando tentei ajudar um camarada de tudo
quanto é jeito, atrapalhado. Estava voltando pra casa depois de me despedir de
um amigo. No caminho para o ponto de ônibus, o pequeno até aqui de malas passou
por mim e pediu que eu o ajudasse. Mas não parou, continuou caminhando
apressadamente. Aí veio a minha reação meio sem razão. Saí atrás dele tentando
de toda forma dar um auxílio, que se reduziu à operação inócua de andar com a
mesma pressa que ele. Até tentei dar um apoio, amparando com as duas mãos, a
valise que ele lançara sobre as costas, mas ele ia tão rápido que me delegava
apenas a menção, minhas mãos como se rogasse por algo, vagaram abandonadas ao
vazio. Até que desisti. Ele, feito uma mula comboieira ladeada de caçuás, se
adiantou ligeiro. Eu fiquei pra trás tentando entender aquela situação. Passou,
inclusive, da parada do Perpétuo Socorro e sumiu ali pras bandas da rodovia
Snap. Não teve resultado aquele arremedo de comunicação. Um pedido de ajuda,
vindo de um estranho, muito estranho, que não era dado a ajudas.
Por
agora, me vi em outro desafio para administrar minha atenção. Com resultado mais
aquele, na comunicação. Trancei, por um tempo, uma prosa elaborada, profunda,
rica em informações, com um cidadão. De costas.
Estava
na caminhada matinal numa rua da Tijuca, no Rio, que tem uma pedra enorme no
meio do caminho. A gente aqui de Belém, ou mesmo dessa região de planície não
está acostumado com essas expressões de relevo, daí que faço questão de passar
por ali e admirar aquele bloco rijo, pomposo, se elevando no meio do nosso
trajeto.
Eis
que ouço alguém atrás de mim, em brados fartos, coordenados e insistentes. Como
só eu caminhava na calçada, estava era se dirigindo a mim. Caramba, exclamei
apreensivo, maldando ser um desses destrambelhados que pelo comum encontramos
na rua pedindo golpe, intervenção militar, procurando papo de anistia para conjuradores.
Virei o olhar para avaliar a companhia, as menções e intenções. Tinha mesmo o
baque do cidadão de bem do zap. Bochechas coradas, salpicadas de barba
cerimoniosamente doirada, passadas marciais, traje do tipo despojado-caro. Rapidola
volvi ao caminho e mantive uma distância de segurança entre nós. Tinha uma voz
potente e que me revelou umas frases organizadas e compreensíveis. E ora, ora.
Tá vendo como a gente não pode maldar. Não tinha dolo. Só queria partilhar a
mesma admiração pela rocha que se expunha ali na avenida. E, me localizando no
adiantado, alterava o tom para me informar que aquela pedra tinha mais de
sessenta milhões de anos. Quando captei a mensagem, interagi. Mesmo seguindo
meu caminho, virei o rosto e de través, admiti que poderia ser bem mais, a Geologia
da região datava para mais distante no tempo mesmo. Emendou pedindo que eu prestasse
atenção lá ao longe, ao corcovado e acrescentou ter lido em algum lugar que a
pedra do Cristo tem mais de 500 milhões de anos. A seguir, filosofou. “E a
gente acha que viveu muito. O homem se considera o dono da Terra. Não é nada
diante das maravilhas eternas da natureza”. Taí, aquele senhorzinho com jeito
de militar aposentado estava me saindo melhor que a encomenda. Ainda de costas,
dei linha reforçando que em termos de ocupação da Terra, o homem perde feio
para a samambaia. Lembrei Carl Sagan quando afirma que pela idade da Terra, se
comparada a um ano, o homem moderno só apareceria nos últimos minutos do dia 31
de dezembro. Animei com a companhia da caminhada e ainda de costas, para
ilustrar a vastidão do tempo, iniciei aquela lenda do passarinho que a cada mil
anos vinha afiar o bico numa rocha. Mas antes que eu concluísse a história com
a abstração da eternidade, olhei para trás e o homem não estava mais. Foi aí
que me peguei falando sozinho.