O sincerão
Pra
ele, noves fora um, claro, porque se for pra empastelar o pouquinho de valor
arduamente conquistado pelo nosso esforço, não dá pra suportar. Tem que sair de
banda, de banda, de banda. De lado.
Então
foi assim. Digamos que estava eu numa confraria obreira, cheia de demandas,
precisões e zero de recurso. E a regra é clara. Quando nos falta alternativa,
recorremos ao nosso charme. Precisava disso, eu acionava minha rede de contatos
e conseguia. Daquilo, e lá eu me abalava pra internet, buscava os parças,
pirangava aqui, ali um jeitinho e alcançava um resultado. Nessa época recebemos
apoio de engenheiros, advogados, consultores, jornalistas, acadêmicos das mais
variadas matizes, tudo na base do 0800, graças às boas relações guardadas desde
meus tempos de Escola Técnica, do Movimento Estudantil, da militância na Igreja
e até de pariceiros garimpados (e atualizados nos fazeres) entre a molecada da
Mauriti.
Deixa
estar que um companheiro abismado com minhas parcerias, com minhas
desenvolturas e desenrolos, não resistiu, desprezou a alteridade, lustrou de
brilho agressivo o lado sincerão dele e soltou essa: “éraste!, tu conheces um
monte de gente, todo mundo com uma formação importante, só tu que não és nada”.
(Risos. Risos constrangidos). Égua! chega gelei. Foi na frente de um monte de
gente. Chocou, doeu, mas era, dependendo do ponto de vista, uma verdade. Pelo
menos sob olhar de uma sociedade baseada em teres e haveres, ostentar apenas o
charme e uma capacidade ferina de sobrevivência não é suficiente para nos fazer
dignos de representação ou de ocupação legítima do espaço. Para agradar ou convencer,
tem que mostrar uma gradação social ou mergulhar nos bolsos de padrinhos
fortes.
Passou.
Dei o noves fora um na pessoa que fez este comentário derrotista, pus o pé
atrás em outras e tantas oportunidades em que me vi acossado por estas
convicções modeladoras de personalidade a partir de títulos, coquetes e
penduricalhos forjados em apadrinhamentos. E segui de banda, de lado. Muitas
vezes só, no carimbó.
Eis
que, coisa de semana e pouca atrás, eu fui assistir a uma mesa no Hangar, que
contava com a presença de alguns fenômenos atuais da literatura brasileira.
Itamar Vieira Junior, Carla Madeira e o marabaense Airton Souza. A mesa foi
mediada, com notável generosidade, pelo sociólogo e escritor Sérgio Abranches.
Assuntos do momento foram postos na roda de conversa e sempre com acoplamentos
à perspectiva literária. No bojo dos argumentos percebi, e ainda, a partir de
reiteradas afirmações do autor de ‘Torto Arado’, que a literatura é uma peça criativa de nítida integração, de
reformulação, reestruturação social e... emocional. E cravou, a meu ver, com
aquela visão interativa da literatura, a relação de alteridade estabelecida
entre quem escreve, os personagens que cria e quem lê. Há, neste entendimento,
a possibilidade de nos identificarmos com os fatos, personagens e cenários
envolvidos nas composições narrativas.
Na
boa e na vez, significa que se nos dobrarmos às mecânicas sentimentais, filosóficas
e muitas vezes íntimas que se realizam
na literatura, podemos em outra esfera da vivência, experimentar o lugar do outro,
sentir, reagir, perceber, refletir como o outro. E reconhecer no outro, não uma
pessoa que representa o nada no tempo e no espaço, e sim alguém que tem a
capacidade de falar, se revoltar, revolucionar, subverter ódios e preconceitos.
O
sincerão não tem um solo plano e seguro de apoio. Não reconhece delicadeza ou
regras de amizade. Fere, e fica marcado na história por infelizes intervenções
(às vezes forçosamente toleradas como uma forma inofensiva de humor). O que se
dá é que não amadurece e cai.
Aí,
a gente desvia dele, sai de banda. Muda de calçada, se arma de orgulho e
resistência. E se necessário for, segue só, no carimbó.