sábado, 22 de novembro de 2025

crônica da semana - sandalhada à milanesa

 Sandalhada à milanesa

Conheci um camarada que, quando viajava, passava a pão doce e um tubo de Redoxon. Isso para mim diz muito sobre potência e resistência, e também sobre superações e fraquezas. O camarada sabia dosar graminha por graminha, a efervescência dos seus ímpetos. Alerta também que a gente não deve sair por aí querendo ser o que a folhinha do ano não marca.

Eu sou dessa linha. Procuro o equilíbrio.

Quando a gente se abala a conhecer outros lugares, já deve ir preparado. Admitir que não tem as manhas dali. Dar umas passadas adiante, marcar passo, avaliar e corrigir curso. Senão, acaba a grana e a gente fica na pira.

Uma das minhas viagens de maior sucesso em controle de gastos foi para Gramado. A cidade é tida e havida como um dos destinos mais caros no Brasil. Tem fama, tem atrativos; a novidade do frio e, com sorte, da neve.

Tem que se enturmar com as gentes da região. Do jeito que fazíamos nos anos 80, quando partíamos pra Algodoal ou paraísos ainda pouco conhecidos na região do salgado paraense só com um contado para as mais básicas precisões e para tudo quanto os outros tantos, somente o charme e a cara de pidão, atributos com os quais contávamos para conquistar a generosidade dos pescadores. Se não, nos conformávamos às dádivas da natureza em abrigos nos escaninhos das dunas e nos quentinhos das fogueiras na areia, alimentados a punhados de estrelas e brisas fresquinhas.

Já lá pras bandas de Gramado, a estratégia teve poucas alterações de caráter e definições. Nos primeiros dias, o jeito foi encarar a onda. O movimento na cidade se concentra em grande parte ali pelo centro, nos entornos da Rua Coberta e do Palácio dos Festivais. Por aquela região, se a gente tivesse que gravar um vídeo reclamando dos preços, não haveria gigabytes que suportasse em tamanho e foco. É tudo lá nas alturas. Da garrafinha de água ao fondue. Respeitando as correções monetárias, diria que nos primeiros dias, deixamos no caixa dos restaurantes algo perto de 60 Reais. Isso para uma refeição substanciosa por dia. Pela regra, só almoçávamos. À noite nos valíamos da graça do Senhor, da desculpa do frio e de um pãozinho torrado com café (coisa pouca além do redoxon). Ali pelo terceiro dia a bom bater perna, indagando aqui e ali, descobrimos um restaurante a quilo. Caiu pela metade nosso custo, deu até para acrescentar uma sopa no jantar. Do meio pro fim a gente já estava era dividindo uma marmita de 10 contos. Esticamos o passeio até Canela, que é cidade ao pegado, e lá encontramos outro restaurante bem mais em conta. Fazíamos o roteiro, na volta, montávamos uma bem sortida marmita e levávamos pra comer no hostel. Dava pra dois e ainda sobrava. Tô dizendo que tem que saber das manhas! (armoleca num sabe).

Mas não vamos longe. Aqui em Belém mesmo, fizemos um circuito cultural no domingo tudo no raso e espremido da grana. Só nos deslocamos de ônibus, de grátis. Embora demore uma eternidade, o fato da gente não pagar, nos permite baldeações. Então, pega-se o primeiro que passa. Quando calha de baldearmos, baldeamos. De água, nos servimos nos prédios e museus que visitamos ou nos bebedouros instalados pelas docas da Guajará. Na hora do almoço foi que o bagulho pegou. Os preços estavam por acolá. Mas mesmo se nos quedássemos a uma extravagância, quando que dava pra quem queria! Não encontramos um único lugar vago nos restaurantes. Fila em todos. O Veropa também estava que só passava a brisa mesmo e aquecida também de calor humano. Pegamos um ônibus e a bom baldear. Ao pegado do centro, encontramos um bar que servia refeição com preço fixo, guarnição à vontade. Minha companheira se adiantou nas escolhas. Quando voltou, veio equilibrando uma sandalhada de peixe à milanesa. Uma posta deste tamanho dominando a guarnição, e que passava da borda do prato. Logo que piranguei e nem fui ajeitar prato só pra mim. Deu pra nós dois. Eita domingo do liso. Só na manha.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

tributo

 

A sete palmos sob o chão

Repousa o corpo mutilado da natureza

A deusa morta

Vultos em desespero bailam a sua volta

E entoam cantos e rezas

O bêbado sonhador dorme sobre seu corpo estático

E voa até o silêncio dos campos verdejantes

Revivendo a história

Apega-se ao mar moleque

Voa com os pássaros em direção ao sol

Rasteja-se com os répteis milenares

Sacia-se da fome e da sede por dádivas da mãe

O vento revolve os seus trapos

Correndo por todo o corpo

É livre, forte e belo

Até emudecer diante dos predadores, das dores

Transborda de humilhação

Cambaleia ante os punhos armados e dorme

Para que mãos reluzentes o despertem

Sobre as cinzas do seu corpo mutilado de futuro

sábado, 15 de novembro de 2025

rônica da semana - floresta em pé

 Floresta em pé

Numa viagem de avião, em trecho curto que seja, ou mesmo de barco, carro, quando a gente se adianta nos interiores, além das ocupações urbanas, logo a gente dá com a floresta. É aquela imensidão verde. Uma incrível composição biodiversa que, saindo do perímetro geográfico amazônico, a gente não vê em parte mais nenhuma do Brasil. É a dita floresta em pé. Ativa. Evapotranspirando. Produzindo vida e harmonizando o planeta.

O que se admite e a causa que nos leva à luta, é manter árvore em pé. E quando a gente se depara com a situação inversa, com mina de árvores deitadas ao chão, desanimadas e secas, nossas motivações ganham além do caráter ambiental, uma alta dosagem de estimulantes emocionais...

(O quadro era uma menção ao horror. Uma parecência com algum tipo de inferno tormentoso e triste. Um ajuntamento caótico de troncos, raízes, galhos, testemunhos de frutos e flores, uns sobre os outros, imprensados num segmento do vale. Quando dei com aquele panorama, senti o coração apertado, o fôlego sufocado, as vistas entregues à umidade, ao lamento. Era uma área que havia sido desmatada para a atividade de exploração imediata.

Para mim, não era comum topar com estas cenas. Atuava muito na pesquisa, fazia a geologia pioneira, era linha de frente. Entre mim e as minas instaladas havia uma longa distância e enfileirados processos. Esta fase intermediária entre a pesquisa e a extração que exige preparação de área, supressão, infra-estrutura, montagem, experimentei dessa vez no aproveitamento de reserva no leito do igarapé, e uma outra, em terra firme.

São choques diferentes. Quando as interferências acontecem nas calhas dos cursos d’água, a gente sofre o impacto, sente o golpe de tantas árvores abatidas e empilhadas desordenadamente, mas ainda se localiza espacialmente, tem a referência alto/baixo do relevo marcando as drenagens. Se retirada a mata desfalecida do leito, na fase de limpeza, ainda assim a gente se encontra no mundo.

Agora quando na encosta, em terra firme, é mais impactante. Uma sensação de esvaziamento, uma visão delirante, desestabilizante, desnortente nos abate. Parece que a gente é um pontinho perdido no meio do nada. Foi o que aconteceu quando me vi atravessando as fases e cheguei até o processo de montagem de uma planta em Rondônia. Fiz a geologia de detalhe, medições, potenciais e viabilidade. Depois, calhou de me pegaram para as demarcações topográficas. Era ainda tudo na mata em pé. Todos os dias eu adentrava a área. Tinha meus controles, picadas mapeadas, direções e sentidos identificados, piquetes e marcos de apoio.  Eu me virava por ali indo e vindo, fazendo varações, escolhendo caminhos, a mata em pé dando as dicas. Sempre referenciado. Tudo marcadinho, entreguei para a turma da operação, mudei de área e passei para outras atividades. Com um tempo, voltei. Dei com o puro limpo. Nem os marcos resistiram à fúria dos tratores. Eu não reconhecia mais aquele lugar. Era só descampado e céu. Uma desoladora visão das ausências, dos débitos, das culpas. Eu me senti um pontinho desorientado).

Naquela época, quarenta e tantos anos atrás, penso que não havia os controles que hoje regulam a atividade de exploração. Pelo menos a nós na linha de frente não nos eram repassadas regras ou compromissos ambientais. Sei que as árvores retiradas não eram queimadas (Agora, em tempos recentes, descobri que havia uma turma que arranjava um jeito de lucrar com as árvores retiradas na limpeza, realizando contratos irregulares com madeireiras. Esta é a revelação que me pega em atraso, por operar à época, tocado por inocências e romantismo. Não maldava).

São duas experiências que pautam minhas reflexões até hoje. As árvores caídas empilhadas confusamente entre barrancos e o solo nu sem uma única cintilação de vida. Lembranças duras, mas que ao menos justificam agora, a defesa do incomparável valor que tem a floresta.

sábado, 8 de novembro de 2025

crônica da semana - árvores gigantes

 As árvores gigantes do Tumucumaque

Eu aqui fuçando na internet meu próximo destino de turista aventureiro, dei com as expedições realizadas na região do Tumucumaque. Apreciei. Procurei mais material.  Há uma equipe dedicada às pesquisas naquela área e periodicamente eles partem pra lá para atualização de dados. Muitas dessas campanhas são divulgadas na rede. Em mim, quando vejo essas missões cheias de desafios, me bate logo a liga. Rola uma identificação. Esta de monitoramento das árvores gigantes em especial porque, exceto na envergadura porruda por demais das árvores que é fator endêmico, em tudo me é íntima. Por aquelas situações todas, passei. Destaque para a transposição das corredeiras do rio Jari. Enfrentei os mesmos aperreios no Xingu. Havia um trecho do mesmo jeito encachoeirado que, de forma semelhante, vencíamos na rabeta, na perícia do barqueiro e no equilíbrio das traias sobre a cabeça em arrodeios convulsos e pedregosos.

São os ônus do ofício. É por isso que digo: pesquisador, explorador, buscador de conhecimento e razões de vida me inventam cada uma. Se jogam na missão. É categoria que se envolve alheia a temores. Nas minhas vivências no Xingu, experimentei cada parada. Naquele tempo, coisa de 40 anos atrás, a margem direita do Xingu era um ermo só e recheada de barreiras naturais, incluindo aí a incontável legião de carapanãs que, em ataques indefensáveis, literalmente nos empurravam aos limites do juízo.

Embora os obstáculos me fossem comuns e graves, nem do trisca superavam o que passavam as equipes de florestal e hidrologia. Eram abnegados, apaixonados pelo que faziam. As minhas campanhas eram de estágio adiantado, sondagem, mapeamento de detalhe, ensaios geotécnicos. Tinha sempre uma estrutura mínima de deslocamento e acomodação. Transporte de helicóptero, acampamento com cozinha e até retrete. Eles não. A hidrologia vivia enfurnada nos barcos subindo e descendo rios em um emaranhado hidrográfico interminável. Para os pequenos da florestal, era tudo no pé e o acampamento se concentrava nas costas. Rede para descansar e passar a noite, era atada no pé de pau. Com a turma do barco, só me encontrava em raras oportunidades, no escritório, em Altamira. Tinha uma admiração enorme pelo trabalho deles, e eles se apegaram a mim. Tanto que mereci uma cópia do trabalho final da equipe. Um mapa fantástico com o maior acervo de registro de rios do baixo Amazonas. Incrível. Numa escala de bom discernimento e com detalhes fundamentais nos arranjos e comunicação entre furos. Este mapa, tenho até hoje. Está rasgadinho, tem uns remendos com durex e uns encriquilhos. Entretanto, antes do Google maps, é a minha maior e mais segura fonte de pesquisa quando quero saber coisas das beiras longes e do estuário guajarino.

Já a turma de florestal aqui, ali topava comigo. De vez em quando, nas extensas caminhadas que faziam, varavam num acampamento que eu estava. Abrigavam-se por um dia ou horas e eu fazia questão de lhes proporcionar algum conforto. Mas eles eram empedernidos e inquietos. Logo levantavam acampamento e seguiam. Faziam um trabalho admirável. Boa parte do que se conhece das margens do Xingu, ao pegado e abaixo se deve a essa turma de profissionais da Engenharia Florestal. Traçavam malhas reduzidas de caminhamento, e para cada quadrícula aplicavam a metodologia de catalogação das árvores. Mediam diâmetro, altura, envergadura...Tinha a impressão que faziam essa verificação em cada talinho que encontravam no caminho, tal era o nível de amostragem. Inventariavam o potencial da região com esmero e precisão.

Em outros pontos da Amazônia semeiam excelência. Imagino a turma que dominou as alvoroçadas corredeiras do Jari, pôs as traias nas costas, dormiu ao sereno da madrugada. Penso na felicidade quando encontraram um Angelim Vermelho pródigo em encantos distribuídos nos seus 80 metros de altura. Acredito a emoção ser também gigante.

sábado, 1 de novembro de 2025

crônica da semana - a cozinha é minha

 Louça é coisa que rende

Corre à larga que eu era amamãezado. Que por ser o único homem na família, tinha uns descontos, contava com vantagens, no dia a dia, sobre minhas irmãs. Em tudo. É uma opinião que reconheço, mas que não representa toda a verdade. Ali pela infância, adolescência, mamãe nos tratava por igual. Tudo era dividido no justo das partes. Não cozinhávamos, mas o resto, de um tudo fazíamos. Toda a filharada tinha que estudar e apresentar notas boas. E se houvesse oportunidade de ganhar um dinheirinho para a ‘intera’, o time todo ganhava as ruas nas vendas.

Talvez, lá pelos caminhares dos anos 80, período que passava tempos longe de casa, sim. Por essa época era tratado como reizinho quando varava por aqui. Digo até que ficava sem jeito com tanto zelo, com mamãe andando atrás de mim pela casa querendo saber se eu queria um isso, se precisava de um aquilo, se me aprazia tal aquel’outro. Não dispensava mamãe, mas tentava uma esquiva, despistava, o que não a desestimulava das missões de agrado. Nem me cabia aquela atenção toda. Vivia no trecho. Bem dizer sozinho. Tinha a rotina e o costume da solidão e suas regras. É bem verdade que minhas precisões tinham sempre um agente nas respostas, sem que o meu esforço fosse necessário. Em todos os lugares que morei, havia o suporte das empresas que me contratavam. Então, eu não arcava com as obrigações de moradia, alimentação, lavagem de roupa, essas coisas que pautam a vida no comum dos dias. Resultava que, ao chegar em casa, realmente eu me via num descompasso, sem ritmo ou tino para fazer as coisas. Esperava o apoio das meninas, da mamãe, nos dias em que eu por aqui charlasse de férias ou por motivos outros. Naquela época se me desafiassem a fritar um ovo ou lavar uma meia, não dava conta não. Por essa ocasião, ganhei a fama de ser dado a paparicos.

Depois, com a minha família constituída, as crianças crescendo e estabelecido com trabalho em Barcarena, sem mais viajar, fui tomando termo. Na fase em que trabalhei de turno e tinha dias ou parte dos dias livres, cheguei a assumir algumas prendas e a ensaiar talentos (ainda que sob o salgadérrimo e calórico pecado do macarrãozinho com salsicha). Mas veio o tempo de translado para Belém, e do meio pro fim, não parava em casa. A minha vida era atravessar essa baía de manhãnzinha e só voltar à noite. Ganhei novamente distância dos desafios do lar. Perdi a dimensão de um piqueirão de louça pra lavar.

E como se lava louça né. É atividade-fim que não cessa numa casa. Foi-não-foi a pia tá cheia. Constatei a intensa dinâmica do lar, especialmente da cozinha, por agora, quando descalcei as botas. Sou, do ano passado pra cá, o mais presente em casa; e controlador absoluto do meu tempo. Ante minha disponibilidade assumi os afazeres do lar. Até uma hora da tarde, observo (sempre fui contra esse negócio de trabalhar debaixo do solão que faz além do meio-dia. É desumano. Minha tabela não compreende virar torresminho na véspera belemense). Faço de um tudo e numa ordem. Primeira parte da jornada é a limpeza da casa. Inspira-me a lembrança de quando eu trabalhava e a moça da limpeza fazia o roteiro do meu prédio. Procuro fazer do mesmo jeitinho, usando os mesmos equipamentos e produtos. No mesmo horário e todo santo dia.

Depois de descansar um pedacinho, parto para as artes na cozinha.

Daquele filho despreocupado ou do pai provedor sem tempo, quero agora distância. Abraço a causa e de forma tal que tenho lutado para ficar exclusivo nas criações culinárias. Tem ocasião, que antes de me lançar às panelas, vejo alguns vídeos de chefs e especialistas só para me certificar que vou garantir sucesso àquela receita cá com o meu pendor.

Quando acerto e rolam elogios aos meus pratinhos, fico é satisfeito. E animado a conquistar de vera o controle da cozinha mesmo que para isso tenha que, concessivamente, vencer a qualquer tempo (até depois de uma da tarde) o piqueirão de louça. Porque, coisa que rende é louça na pia.

 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Sem nada

 Sem Nada

 

O brilho tenta ir embora

A luz, pouca luz

Estupra pupilas testemunhas

Com imagens de horror

 

Gritos lançam-se

Gestos lançam-se

Braços fortes-brasis lançam-se

Em desabalada

Desgraçada

Desencantada

Desesperada

Ânsia louca

 

O gatilho deflagra a bala

Que atravessa os corpos

Que dilacera os ossos

Que vara os olhos

Que pulveriza os dentes

Que mutila a alma

 

A bala é um barco navegando

Em rios de sangue

Derrubando castanheiras

Seringais

Chicos Mendes

Seringais, castanheiras

Por terra

Sem terra

Sem nada

 

A bala é um zunido sem dono

Nenhum grito na cidade

O brilho vai embora

As pupilas testemunhas

Fecham-se alagadas

Alguém passa e cospe nos corpos

Esquecidos de nome.

 

 

sábado, 25 de outubro de 2025

crônica da semana - despertador

 Despertador

Agora, vivendo os dias de um senhorzinho aposentado, me pego ainda na teima de acordar cedo. Não curto acordar cedo!

Justifico esta cisma de madrugador garimpando benefícios desta prática. Faço as minhas caminhadas. E, pelo início da manhã é mais friinho, os passarinhos animam a caminhada, o trânsito é rarefeito, dá pra coletar umas mangas que caíram nas ventarolas noturnas, antes da chegada dos catadores profissas; e ainda tem na conta a possibilidade de observar o deslocamento da sombra das árvores, dos postes, dos prédios, com o sol em baixa inclinação, avisando que a Terra é redonda.

Por essas e por outras, mantenho este desafio de acordar cedo. E eu odeio acordar cedo! Já pensei em outras alternativas, mas por enquanto dou vaga à teimosia.

É peleja que regrou meus costumes por longos anos e que criou em mim uma aversão, um entojo, uma ira nada santa, uma inimizade colossal com o despertador. E durante todos esses anos, alimentou em mim um desejo recorrente: espalhar todos os despertadores do mundo no chão e passar um rolo compressor sobre eles. Destruir, esbandalhar tudinho, até não sobrar uma molinha animada sequer. Esta era a minha ilusão de liberdade, de insurreição redentora, de desapego total das dores provocadas pelo desperta-dor. Mas quando que, liberto de bater ponto, me veria sem trégua neste tempo de agora, quando poderia esticar a soneca e não estico. Égua, chega me dá buscar um desatrapalho na mente.

Deixa estar que hoje, o custo nem é tanto. O meu cedo já bate a campa beirando as seis, bem além dos meus últimos anos na ativa quando o zinho tocava aquela música traumatizante no justo das quatro e meia da madrugada. E eu ainda operava no modo de choque. Provocava, deixava o celular tocar fora do meu alcance para forçar que eu me levantasse, me espertasse logo de prima e evitasse aquele velho e tentador ‘touche’ de desativar ainda em meio sono a campainha para dar mais aquele minutinho de morga. Eu é que não confiava. O bicho tocava, eu dava era um pulo e o dia já estava valendo. Do meio pro fim esta tática ficou meio ineficaz e mesmo no modo pavor, eu levantava, mas remancheava, corria pro sofá, reinava recostar a cabeça e apelava para a resistência. A um custo, mas mantendo a opinião, partia para passar um café quentinho. Fui levando na força e na coragem, até sentir que aquilo não dava mais para mim. Recorri a lenitivos. Adotei a regra do sono interrompido. Na luta, seguia. Tomava café, me arrumava, punha o uniforme, a bota, supria a mochila, ganhava o rumo do porto. A lancha para Barcarena saía às 6 e meia. Em toda a minha história nessa travessia, o tempo de viagem até o trabalho era dedicado à leitura. Deu-se que aos quarenta e cinco do segundo tempo, com o argumento do sono interrompido (não mais um despertar completo), abandonei a leitura matinal, e dei pra tirar um soninho de 45 a 50 minutos, na viagem. Para mim, significava continuar o barato daquela soneca boa das 4 e meia cortado pela gasguitagem do desperta-dor. O efeito colateral do cansaço foi que passei a ler menos. E aí, rapazinho, foi um prejó. Senti falta, magoei.

Passou. Dei baixa na carteira, entrei para o time dos aposentados e tenho o tempo, a vez, do jeito que bem entenda. Adeus despertador.

Quite! Logo nos primeiros dias, o que fiz foi dar um adianto porque 4 e meia não é um horário que indique alguma lucidez num cristão avesso a penitências (e também porque não me apraz acordar cedo). Calibrei para as seis horas que, embora não seja um horário que um aposentado se obrigue a acordar, não dói tanto; e lá s’estava eu levantando de novo ao som do desditoso despertador. De igual maneira. Modo pavor. Ô sina, que resignado aceito! Entretanto, vendo assim por outro lado, a contemplação da aurora me dá uma ocupação nesta minha fase de desocupado e não deixa morrer em mim o desejo de esmigalhar os aparelhos despertadores e seus traumatizantes cocoricós tudinho debaixo de um rolo compressor.