sábado, 16 de novembro de 2024

crônica da semana - sincerão

 O  sincerão

Pra ele, noves fora um, claro, porque se for pra empastelar o pouquinho de valor arduamente conquistado pelo nosso esforço, não dá pra suportar. Tem que sair de banda, de banda, de banda. De lado.

Então foi assim. Digamos que estava eu numa confraria obreira, cheia de demandas, precisões e zero de recurso. E a regra é clara. Quando nos falta alternativa, recorremos ao nosso charme. Precisava disso, eu acionava minha rede de contatos e conseguia. Daquilo, e lá eu me abalava pra internet, buscava os parças, pirangava aqui, ali um jeitinho e alcançava um resultado. Nessa época recebemos apoio de engenheiros, advogados, consultores, jornalistas, acadêmicos das mais variadas matizes, tudo na base do 0800, graças às boas relações guardadas desde meus tempos de Escola Técnica, do Movimento Estudantil, da militância na Igreja e até de pariceiros garimpados (e atualizados nos fazeres) entre a molecada da Mauriti.

Deixa estar que um companheiro abismado com minhas parcerias, com minhas desenvolturas e desenrolos, não resistiu, desprezou a alteridade, lustrou de brilho agressivo o lado sincerão dele e soltou essa: “éraste!, tu conheces um monte de gente, todo mundo com uma formação importante, só tu que não és nada”. (Risos. Risos constrangidos). Égua! chega gelei. Foi na frente de um monte de gente. Chocou, doeu, mas era, dependendo do ponto de vista, uma verdade. Pelo menos sob olhar de uma sociedade baseada em teres e haveres, ostentar apenas o charme e uma capacidade ferina de sobrevivência não é suficiente para nos fazer dignos de representação ou de ocupação legítima do espaço. Para agradar ou convencer, tem que mostrar uma gradação social ou mergulhar nos bolsos de padrinhos fortes.

Passou. Dei o noves fora um na pessoa que fez este comentário derrotista, pus o pé atrás em outras e tantas oportunidades em que me vi acossado por estas convicções modeladoras de personalidade a partir de títulos, coquetes e penduricalhos forjados em apadrinhamentos. E segui de banda, de lado. Muitas vezes só, no carimbó.

Eis que, coisa de semana e pouca atrás, eu fui assistir a uma mesa no Hangar, que contava com a presença de alguns fenômenos atuais da literatura brasileira. Itamar Vieira Junior, Carla Madeira e o marabaense Airton Souza. A mesa foi mediada, com notável generosidade, pelo sociólogo e escritor Sérgio Abranches. Assuntos do momento foram postos na roda de conversa e sempre com acoplamentos à perspectiva literária. No bojo dos argumentos percebi, e ainda, a partir de reiteradas afirmações do autor de ‘Torto Arado’, que a literatura é  uma peça criativa de nítida integração, de reformulação, reestruturação social e... emocional. E cravou, a meu ver, com aquela visão interativa da literatura, a relação de alteridade estabelecida entre quem escreve, os personagens que cria e quem lê. Há, neste entendimento, a possibilidade de nos identificarmos com os fatos, personagens e cenários envolvidos nas composições narrativas.

Na boa e na vez, significa que se nos dobrarmos às mecânicas sentimentais, filosóficas e  muitas vezes íntimas que se realizam na literatura, podemos em outra esfera da vivência, experimentar o lugar do outro, sentir, reagir, perceber, refletir como o outro. E reconhecer no outro, não uma pessoa que representa o nada no tempo e no espaço, e sim alguém que tem a capacidade de falar, se revoltar, revolucionar, subverter ódios e preconceitos.

O sincerão não tem um solo plano e seguro de apoio. Não reconhece delicadeza ou regras de amizade. Fere, e fica marcado na história por infelizes intervenções (às vezes forçosamente toleradas como uma forma inofensiva de humor). O que se dá é que não amadurece e cai.

Aí, a gente desvia dele, sai de banda. Muda de calçada, se arma de orgulho e resistência. E se necessário for, segue só, no carimbó.

sábado, 9 de novembro de 2024

crônica da semana - Ubaldo

 Esqueci o Ubaldo (imperdoável pecado)

Acontece. A gente pode até dar uns descontos: o afogueado da hora, a urgência da informação, a lista farta de ilustres. Entretanto, pelo certo e justo, imperdoável foi esquecer o Ubaldo. Estou me mordendo de penitência desde segunda-feira por causa deste branco no cocuruto.

Pior. É o que me acontece daqui pra’li. Mais pelo fato d’eu ter esta presunção, este calibre metidão de querer dispensar pautas de apoio, lembretes, recursos visuais e na hora de dar o plá, preferir sempre a memória, que nunca foi muito aquela.

E olha que já tomei choques de derrubar mastodontes. Ocorreu num seminário, quando eu fazia Geologia. Era o senhorzinho da minha equipe, a petizada por respeito me deu a apresentação do trabalho. Slides prontos, sequência definida, recomendações e boas sortes. Não dei as horas sequer para as palavras chaves em destaque nas lâminas. Olhar para o Power point iluminado na parede, acho que nem de ladinho. Viajei na mandioca braba. Entrei em transe. Até que ainda podia sair dali respirando. Meu tema era algo comum na minha vida profissional e de estudante. Se referia a algumas estruturas das rochas que manjava de muitas eras. Falhas, fraturas. Na boa. Agora, juro, estrias, nunca tinha ouvido falar. Nem maldei de procurar com a equipe os conceitos e exemplos. Usei meu charme, minha retórica guarda chuva, aquela que abriga tudo, embanana tudo, mistura José com Cazuza. Ao final da tragédia, meu professor me anarquizou ali na frente de uma garotada atônita. Nem tanto pela minha fala atarantada e marcada pela mancada das estrias, mas pelo meu total desprezo pelas dicas que estavam generosas e claras, nos tópicos destacados da apresentação. Chega fiquei mofino. A garotada da minha equipe só não me chamou de santo. Ficamos de mal a morte um tempão.

O que torna e o que deixa é que a idade chega, a Terra gira de lá a cá e eu não aprendo. Participei de uma mesa para falar da produção de crônicas e contos, esta semana, na Feira Literária de Barcarena. Fiz um roteiro bacana, salvei no celular. E, olha só, estava que era uma maravilha. Cortando e arando. Nesses casos, é natural que o mediador, a assistência e até mesmo o escritor, façam gosto de registrar suas influências. Nessa hora, no fogo do entusiasmo, dispensei as dicas do meu arquivo salvo no celular.

É um momento que dou maior valor, prezo falar dos grandes. Os contistas, os canônicos cronistas, a coleção Para Gostar de Ler da Ática, o Sobral, o Chembra, Eneida, Lígia, meu ídolo Veríssimo...

Não poderia jamais ter esquecido o João Ubaldo. Um pecado imperdoável que procuro, ainda que sem fé de êxito, remediar aqui.

Autor de obras consagradas como “Viva o Povo Brasileiro”, “Sargento Getúlio”, “O Sorriso do Lagarto”, João Ubaldo Ribeiro nos cativava aqui no leito familiar, na sua versão mais leve, a crônica. Houve um tempo, em casa, que o livro dele andou de mão em mão, e de vez em quando recebia um elogio no mais legítimo paraensês: “égua, não, pai, parei pro João Ubaldo. Ele é muito doido”. A família adorou. Recordista de mimos foi a crônica que ele conta ter sido barrado num evento em que ele era a atração. “não tenho cara de escritor”, dizia ele. E nem a solenidade, a soberba intelectual, a sisudez monocular de Machado, a compenetração alencarina, como ele mesmo afirmava, sempre que provocado. Era o escritor da bermuda, chinelo e uma encantadora cadência baiana no falar.

Entre os sodreres, é um querido. Na postura despojada e no domínio da ciência mundana das palavras. Acadêmico, imortal, reanimava-se em talento no fio do irrevogável bigode.

Mil perdões. Esta minha mania de querer dar conta das prosas, até as mais aquilatadas, só com meus débeis neurônios, me causou dor e arrependimento sem fim. Jamais deveria ter esquecido o João Ubaldo. Mesmo porque, também não tenho cara nem termos de escritor.

 

 

sábado, 2 de novembro de 2024

crônica da semana - verdes águas da guajará

 As verdes águas da Guajará (e o Pelo Sinal)

Teve gente que ficou numa abismação só. O que os olhos percebiam batia de confronte com a normalidade bege barrenta que nos é dada pela coloração da Guajará, no comum dos dias.

Eu por mim, estava bem assistindo à saída da Procissão Fluvial do trapiche de Icoaraci... mais com pouco o cortejo já ganhando o rumo de Belém... Foi no adiantado desse trajeto, com as imagens de TV fazendo uma panorâmica da baía que percebi aquela tonalidade esverdeada. Esperei por outros posicionamentos da câmera, outros ângulos, definições de luz mais constantes porque às vezes pode ser uma refraçãozinha atípica aqui, um fenômeno ótico ali, uma reflexão repentina e vulgar acolá. Ainda reinei alguém aqui de casa, no calor da festa, ter ornado a TV com uma peça de papel celofane para dar o contraste àquela transmissão. Sim, porque vivi estes artifícios nos tempos em que TV colorida era um luxo alcançado somente pelos barões. Foi naquela época de um Brasil varonil em que não era toda a casa que tinha uma TV. E, de sorte, na vila que a gente morava, um mais aquele de grana que ostentava uma Colorado RQ na sala se aviava com os aparelhos em preto e branco mesmo, que era o bem mais acessível à gente do nosso top social.

A raridade, a baixa densidade de aparelhos distribuídos nas redondezas, criaram uma entidade social fortíssima: a televizinha. Era um aglomerado de peças animadas que envolvia a TV, na sala, a dona da casa, a janela e uma vuca de espectadores se amontoando do lado de fora para acompanhar os eletrizantes capítulos de Irmãos Coragem.

E aí já viu as marmotas. Logo apareceram lenitivos para a ausência de cores no aparelho. Tinha até um empreendedor que fabricava uns quadros transparentes hierarquizados em cores de cima a baixo, que coincidia com o verde na parte inferior da tela da TV e que se podia adaptar ao televisor pra gente ter a ilusão da grama colorida, em dias de futebol. Quem, nem esta presepada podia ter, instalava umas faixas de papel celofane para arremedar uma TV a cores. E a vida corria na ânsia dos matizes.

 

O que se deu é que por agora, essas artes não foram tentadas na TV aqui de casa. A água da Guajará estava era nas parecências verdes mesmo.

Não é um fenômeno de se espantar. Eu não estava lá de palmo em cima. Há realmente, os efeitos da luz nas imagens captadas pelas TVs ou em fotografias, então como não tenho a materialidade, não posso atestar o abismador verde como válido. Agora, o que é certo, é que nesta época do ano, a água da baía do Guajará fica mais clarinha mesmo. Tem a ver com o suprimento de sedimentos carreado das montantes, com o baixo volume de água compondo a calha do Amazonas, e também com as severas estiagens maltratando os principais rios da planície. Estes fatores favorecem a entrada, bem mais apurada, da água do mar aqui até as nossas beiradas. Vivemos numa região que facilita a penetração do mar nos interiores do continente. Temos um desenho estuarino na foz do rio Amazonas. É comum o efeito maré ser sentido em nosso dia a dia. No quadro atual, valendo-se dos fatores que adiantei, o mar se intromete com mais intensidade pelos nossos furos e regos, clareando as águas da Guajará.

Esta dinâmica integrada, argumentada pela Geomorfologia e outras regras geológicas e geográficas explica aquela cor diferente da água na saída da Fluvial. Mas para abrandar o abismamento, além das referências científicas, tenho minha batidinha ribeirinha. Em trinta anos atravessando esta baía, num total de quase 4.000 viagens de barcos, popopô, lancha, já presenciei outros e tantos clareamentos da água. Alerto até para mais um fato que marca este período de agora até dezembro. O banzeiro. De manhã, até que não, mas a travessia, pela parte da tarde, ali, do meio dia em diante, é sempre com emoção. Inspira um Pelo Sinal.

 

sábado, 26 de outubro de 2024

crônica da semana - uma lesma no banheiro

 Uma lesma no banheiro (a promessa)

Vivo a experiência de não mais encontrar uma lesma no banheiro. Não brinco com essas coisas, mas acredito no poder de satisfazer precisões, tomar tento e desencadear fatos, buscar caminhos. Tenho minha planilha agora para antever futuro. Mas antes era no papel de pão ou em sonhos acordado aos embalos de uma rede no corredor da casa.

Era sempre no período chuvoso que elas apareciam. Escorregando devagarinho sobre aquela gosma brilhosa, aquele meio viscoso, de alta tensão superficial que as permitia rastejar como se voassem. Deixavam rastro lustroso. Marcas de presença nojentinhas. Eu me dou com corredor. Mas não com lesmas.

De forma que não é uma ilusão, uma fantasia quando me pego a reviver carreiras alegres pelo corredor de uma casa em terra firme. Uma alegria sem regras ao me abalar da sala à porta da cozinha e me largar aos prodígios do quintal.  Cajueiros espalhados e minados de frutos travosinhos, castanholas discretas, ameixas de roxear os beiços. Jacas das porrudas, abieiro... silêncio.

A moça do outro lado da cerca desejando caju com sal. Não sou de brincar com essas coisas, mas era sinal de menino. Tinha um neném naquela barriga. ‘Deu passo em falso, ninguém num me tira da cabeça’. Outra carreira pelo corredor. Ia dar na rua...

Atravessava com mais de mil sem olhar prum lado ou pro outro. Me aninhava ao pé da mangueira e mirava do outro lado da rua, minha casa. Pensava que sempre fosse morar daquele jeito. Casa com corredor e banheiro, lesmas no inverno. Cajueiros no quintal.

Deu foi do contra. Cuidei de me aviar na promessa com a Santinha.

Não sou de brincar com essas coisas. A pequena desejou e meses depois pariu uma menina loirinha. Na casa dela todo mundo comeu abiu. Silêncio. Sumiram.

Nos encontramos mais tarde, nos trançados da baixada. Quarto/sala/cozinha. Retrete partilhada com os vizinhos da vila e distante das casas. Tinha que caminhar por uma ponte mal arranjada para chegar até lá. E levar papel. Banho era na proteção do encerado e na cuia. Lesma. Mina de lesmas apareciam, aqui, acolá e não se acanhavam em varar fora da época das chuvas. O piso, as paredes do banheiro improvisado eram marcadas por aquele traçado viscoso.

A menina loirinha já estava crescida, folgava pelas pontes. Deu uma hora que na peraltice se desequilibrou e caiu no alagado. Da janela de casa vi a cena. Corri para acudir. Engoliu água da vala, teve infecção grave. Outra promessa.

Não havia quintal, nem prodígios, nem desejos. A vida era uma aventura de conquistas diárias. Os milagres acontecendo. A criança se recuperou, a família conseguiu um terreno no Coqueiro, com quintal. Não mais os vi.

A peleja pra cá pr’essas bandas continuava.

Não sou de brincar com essas coisas. Mas sentia saudade dos cajueiros, e dos sonhos acordado aos embalos da rede no corredor. As desabaladas de fora a fora no corredor eram uma maravilha, atar a rede lá pra dormir, nem tanto. Aos primeiros movimentos da manhã, era o primeiro a levantar, tirar a rede para abrir espaço às lidas do dia. Nessa leva, se aprontar, se entalcar e... escola. Mas... sem comparação com a baixada, onde era tudo mais emboloado. Sem corredor, era um por cima do outro. De manhãnzinha era um aperreio só para as precisões e tinha a legião de lesmas.

Penso nos outubros próximos e em todos eles, meu agradecimento à Santa. Vi a mobilização popular forçar medidas acanhadas de governo, que com toda a derrota, drenaram a água de boa parte dos alagados que tínhamos na Pedreira.

Quando me perguntam sobre os meus agradecimentos à Santa, todo ano, uma resposta justa me vem de prima. Vivo a graça de não mais encontrar uma lesma no banheiro. E, de ganho,  retomar um corredor que me dá fantasiar, em desabaladas carreiras de fora a fora da casa, encontros com pródigos quintais e com a moça desejando caju com sal.

 

sábado, 19 de outubro de 2024

crônica da semana - Hera solidário

 Hera uma vez e sempre

A caminhada era longa. Alta madrugada. Um relato aqui outro ali do Chupa-chupa aparecendo por aquelas bandas, solidão e vontade de chegar. Com muito esforço, equilibrado, garantindo certinho o trajeto no eixo central das pontes de madeira estioladas que se ramificavam no alagado até chegar ali pelo adianto da Itororó, meu caminhar, alheio às espreitas da noite, tinha o rumo decidido de casa.

Tirava no pé da Primeiro de Setembro, nos limites do campo de aviação, até a vila em que eu morava, na Mauriti. Com varações pelo beco do Gentil, estreito do Salesiano, canal da passagem D’outel, da Pirajá até pisar no asfalto da Pedro Miranda. Um bom estirão sem iluminação, cachorros vadios doidos pra dar uma carreira num passante, sapos agoirando ao largo do lago e a impressão de uma pisação atrás de mim. A maior parte do trecho vivia entre arrepios e medos. Mas valia a pena. Tinha passado uma boa parte da noite ouvindo as canções do Grupo Hera da Terra, cultivado amizades e me animado com umas visitas ao garrafão de caipirinha que inspirava, altivo, no meio do terreiro.

Eu já era di maior. Podia me dar a essas aventuras noturnas. Estava no final do curso, na Escola Técnica, tinha conseguido uma bolsa no laboratório e me arranjava também com o recurso que vinha de nossa barraca na feira, nada porém, que me desse o rompante de uma viagem de táxi na bandeira 2 da madruga. Me virava na pernada mesmo, às vezes acompanhado do professor Nazareno, letrista de primeira ordem do Hera.

Era bacana voltar com o professor. Ele era um especialista em Pedreira. Conhecia bem a história do bairro e tinha ótimas fontes de pesquisa. O que nos permitia parar em alguns dos inferninhos que bombavam na época. Era considerado, o gerentes ofereciam sopa, PFs, uma saideira. A gente matava a broca depois da noitada, pelos escondidos boêmios. Não mais que isso. Tudo acontecia em favor da pesquisa pelos corredores do Shangrilá.

Como eu tinha a bolsa, passava o dia todo na Escola Técnica. A combina com mamãe era que cedo eu montasse a barraca na feira esperasse umas das minhas irmãs e daí estaria liberado. Nessa época, um fato incompreensível hoje, à luz da LDB, aconteceu. A Escola passou a fornecer merenda escolar. Deu-se que na batida da campa do primeiro horário, eu já estava na fila. Participava também da sessão da tarde e fechava a fatura na janta. Fazia as três refeições na Escola. Me aprontava para a jornada. Tinha uma boroca, socava as coisas dentro. Meus pontos da Escola, toalha, material de higiene, meu leite de rosas, panfletos do Movimento Estudantil. Carteirinha... na sexta-feira, a conta era batida. Não ia nem em casa. Dava a hora, corria pra Mauriti esperar o Sacramenta-Reduto. E me socava na Primeiro de Setembro. O ônibus era o Uber da época, me deixava, bem dizer na porta da melhor música que se fazia na Sacramenta.

Numa dessas, depois da nossa reunião lítero/etílico/musical, me aprumei na direção da Pedreira. Dessa vez, não era  impressão. A uma distância não muito grande, uma pessoa se movimentava na minha mesma pisada, atrás de mim. Pelei de medo. Acelerei o passo, cortei caminho pelas pontes mais instáveis, corri como se corresse de um cachorro que latia perto. E o sujeito atrás. O que eu fazia, ele fazia. Na fé, avistei o asfalto lá em cima e as luzes da boemia. Quando cheguei na parte nobre da Pedro Miranda, me senti aliviado... Mas quando! Não é que a polícia apareceu, me parou, revistou minha boroca e tudo. Fiquei indignado. Lá atrás, para amainar meus medos, nada da segurança pública. Que perturbação, meu pai!

Daqui a pouco vamos fazer um show em homenagem ao Hera da Terra. Hoje me dou como fruto de uma era musical. Enfrentaria os estirões, o Chupa-chupa, os cachorros vadios e a solidão da noite de novo, só para me encantar com as incríveis criações do Hera da Terra.

sábado, 12 de outubro de 2024

crônica da semana

 Pedido pra Santa

Não sou de pedir. Me dou, pelo comum dos anos, a agradecer. Viver já é uma graça sem medida de tamanho ou definição. Por satisfeito, me tenho ante tantos desafios diários. Por isso, nem conto os anos em que me programo para ver a passagem da Santa e como tantos ao meu lado, erguer os braços em direção à berlinda e, humilde, grato, reconhecer que nem mereço, mas que as bênçãos da Santinha, é certo, me mantêm vivo e esperançoso de todo o bem. Já pedi, um dia? Já. Mas eram pedidos doces. De molequinho da Pedreira.

Lá atrás, bem longe no tempo, era apresentado. Um garoto que por tudo em quanto recorria à Santa. Para uns casos, todo dia. Acontecia num período chuvoso, mais de certo, com atenção àquela chuva do início da tarde. Estudava na Aparecida. Mamãe operava a caixa registradora de uma padaria ali no largo do Museu. Não dava descanso pra Santa. Saíamos juntos, naquela horinha morta da tarde, eu e mamãe. Antes, enquanto salpicava um talquinho no pescoço para refrescar, rezava a reza da hora e pedia para Nossa Senhora para não chover. Que a mamãe pudesse esperar o ônibus, embarcar, iniciar o trabalho; que eu vencesse os dois quarteirões até a Aparecida, tomasse a bença de fessora, me acomodasse na carteira. Depois sim, depois que alcançados nossos destinos, abrigados e já em nossas lidas, Nossa Senhora poderia destravar as torneiras e liberar uma aguinha pra molhar a cidade e amainar o calor. Na maioria dos dias, não tínhamos contratempo. Aqui ali, um chuvisco, mas nada que impactasse nosso rumo e minha combina com a Santa.

Em uma outra ocasião, pedi e paguei uma promessa. Acho que esse pedido deu mais trabalho pra Nazinha, afinal tinha do outro lado, por certo, uma penca de clamores também. Mas rolou. Papão 1 x 0 sobre o maior rival. Gol do Cabecinha. No dia seguinte eu estava varando de lá a cá, a calçada da vila que eu morava. De joelhos e com uma vela acesa na mão. Este bicola! Sempre nos exigindo sacrifícios.

Depois fui crescendo. Entendendo o mundo. Reconhecendo barreiras, degraus infinitos, atropelos, condicionamentos sociais que dependiam mais de mim, superar, que da Santa. A cada jornada, a cada conquista, o mínimo alcançado, posso admitir, ainda que mesmo sem a demanda formalizada, desconfiava que a Santa dava aquela ajudazinha. Estava escrito. Tínhamos aquela parceria que vinha da infância e não mais precisava da formalidade das palavras em preces pidonas ou das promessas.

Desde aquele tempo, meu encontro com a Santa é só para agradecer. Deixa estar que este ano não. Este ano vou pedir.

De novo, pelo Bicola (pra não cair).

E mais, e com toda a fé, peço a intercessão da Virgem para que nossos corações irriguem com o sangue puro e consciente, nosso cérebro. E que a lucidez se faça presente em nossas ações. Que a gente reconheça, a partir de um avivamento da razão, a necessidade urgente de cuidarmos do planeta, dos mais pobres, dos que mais precisam. E que a gente perceba que ninguém se põe em pé só pela vontade. Temos um meio social, uma distribuição de renda desigual e ainda a ganância, a usura de muitos, que empurram qualquer vontade, qualquer sonho para o profundo insuperável do poço e da margem social.

E que a vida conte como nosso bem maior. Tantos são nossos conhecimentos, os recursos tecnológicos, o poder que a ciência tem de evitar o pior. Se a vida contasse, se contássemos com o poder do convencimento pela ciência e não pelas fake news, como exemplo, teríamos outra conduta, preventiva, cuidadosa, ao sinal de tanta chuva que viria atingir o Rio Grande do Sul este ano. Nenhum outro interesse se sobreporia à vida.

Meu pedido para a Santa é complexo, sei. Exige parceria. Tolerância. Coração abrandado.

No entanto, a certeza é inabalável. A Virgem vai cuidar e nos dar a graça. Par’o’ano, estarei aqui agradecendo. Amém.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Bacana de pijama

Agora nesta semana que finda, fez um mês que deixei de trabalhar. Assumi a minha aposentadoria. Decisão ousada. Cheia de poréns, ponderações, narizes torcidos, torcida a favor, desconfianças, mas no geral, muito apoio. Banquei a parada (ipsis litteris). Vou me assumir como um bacana de pijama. No dia 02 de setembro, quando formalizei minha saída da empresa em que operei durante 30 anos, encerrei um ciclo formal de trabalho que teve início lá atrás. Em 1975. Foi permeado pela informalidade em momentos vasqueiros, mas no cômputo previdenciário respondeu além dos requisitos de contribuição. Foram além de 40 anos cravados no papel passado. O que dá, em tudo por tudo, a conta de que desde o primário, quando me aventurei na venda de picolé, até agora em setembro, não parei uma ve’zinha sequer de trabalhar. Tô na baba, já. Mais que na hora de dar tiau.

Quando da minha rescisão contratual (fiz o procedimento na sede do sindicato que ajudei a criar), me permiti levar a primeira carteira, aquela assinada quando eu tinha 12 anos. Faz parte da simbologia do momento, um lance no âmbito do nostálgico que me impõe muita reflexão e algumas lágrimas. Outro ato de intenso valor simbólico aconteceu no dia 02, quando me desfiz do celular corporativo. Ao retirar do bolso e devolver o aparelho para empresa, a sensação era de uma carga de 10.000 elefantes sendo aliviada das minhas costas. Foram tantos os compromissos desprendidos de mim naquela hora. As rotinas, cada vez mais elaboradas, exigentes que a função demandava, e eu, olha só, nos limites desta minha batidinha de idoso...; o acúmulo de inúmeros credos sustentados dentro da minha categoria, dentre eles a fidelidade com os compromissos de classe; a luta pela preservação das conquistas (e que foram muitas); o zelo por amizades caras e sinceras que fiz no meio operário e que, de alguma forma, ainda me viam como referência; a doce lembrança de um dia ter sido uma das meninas da Logística (esta recordação, corrijo, não conta como um peso não, não se mede como uma responsabilidade, mas um alento, um alívio que me abranda o coração desde que tempo. Trabalhei 5 anos só com mulheres e foi uma experiência incrível!).

Disse das emoções. O velho clichê vale para esta experiência de desapego. Quando me desliguei do celular, quando me veio a sensação de paz, ao mesmo tempo passou um filme na minha cabeça. E as cenas iniciais se fizeram muito presentes.

A viuvez de mamãe. O desencanto com o Acre provedor. O desmantelo de sonhos e seringais. Aquele momento na Visconde em que mamãe decidiu lutar e viver sozinha com os filhos; a distribuição de minhas irmãs para as casas de família e a primeira tentativa que eu realizei de ajudar em casa vendendo picolé. Ou uma aventura traumática como oficce boy em um escritório de advocacia na Santo Antônio. Experiência de um único e desastroso dia.

Não havia alternativa. A vida era um aperto só. Não tinha programa nenhum de governo, nenhum numerário vindo de bolsas sociais, plano qualquer de amparo coletivo. O governo militar falava de um bolo que crescia, e nunca chegava a hora de dividir as partes. Nem um cuizinho do bolo sobrava pra gente.

Mamãe soube de um despachante que atuava na DRT da Gaspar Viana. Amanhecemos na fila. O homem não apareceu. Mamãe chorou na porta. Deixaram a gente entrar. E deste dia, herdei a minha primeira carteira profissional. Na foto, a data numa plaquina sobreposta ao meu peito. 24/07/75.

Minhas tias que mantinham carreira no ramo de supermercados, fizeram porque fizeram e arrumaram uma vaga pra mim no Pão de Açúcar, como empacotador (ou boy, no comum dos dias).

A primeira assinatura na carteira aconteceria no dia 11 de agosto. Eu, este bacana de pijama, estava contratado pelo Grupo Pão de Açúcar. Naquele dia o primeiro elefante subiu nas minhas costas.