Surpresa
Se
eu abrir meu coração no claro e justo, não escapa a minha recatada frustração
com o ser humano. De besta que sou. De me achar metidão, exigente, a ponto de
formar um padrão de personalidade e correr atrás de perfeições, ainda que ao
custo alto da solidão. Mesmo admitindo que não sou o suprassumo da retidão, que
não tenho um isso que o periquito roa de santidade e muito pelo contrário. O
certo é que ante tantos descaminhos, ainda mais hoje com a indústria do ódio e da
desinformação em alta, igual a muita gente, minha luta é diária pelo lado probo
da vida.
Ninguém
é perfeito. Eu é que fico tareando no espaço as beldades de caráter, quando deveria
sim, me conformar e garimpar aqui e ali, boas almas que se salvam, cravadas de
defeitos, mas limpinhas, ajeitadinhas, sem dolo ou marcas de maldade. Pessoas
legais, que resistem às contaminações diárias, às rasteiras do mundo vil. Se eu
me livrar de preciosismos, dos jeitos e modos de ser ideais, vou perceber que
do nada, na vulgaridade das horas, emerge do mar agitado desta sociedade
impregnada de egoísmo e ganâncias, pessoinhas da mais alta qualidade. Na
diversidade dos termos e medidas, e que se assentam em todos os calibres. Do
prestativo, ao desapegado. Olha que surpresa agradável aconteceu quando meu amigo
deixou o celular dele dentro do táxi. Com o detalhe das reações. Dele e do
motorista que encontrou o celular:
No
começo, tem a chamada para um carro de aplicativo. Estávamos em folgada tarde a
celebrar anos e anos de amizade. A corrida era pra experimentar a porção famosa
de bolinhos de bacalhau produzida por um bar que ele conhecia. Ao ter a corrida
cancelada e percebendo um táxi nas proximidades, no repente, deu sinal.
Entramos no táxi. Ele ainda com o telefone celular na mão. Entendo que dada a
inutilidade do aparelho, já que a tarifa viria não mais do aplicativo, mas do
taxímetro, meu amigo deve ter se desligado, se distraído. Desviado a atenção
para a conversa com o motorista, que estava era boa. Na certa, por estar atento
aos casos ao largo, largou o telefone por cima do banco do carona. Eu, no banco
de trás, prestava reparo, me surpreendia com a desenvoltura da conversa. Uma
agradável viagem, versada em ironias, risíveis passagens e até em combinas para
o próximo show do Roberto Carlos. Gente boa, o taxista; meu amigo, muito dado.
Fizeram uma boa dupla.
Meu
amigo tem uma consideração distante pelo celular. Sei disso por causa das
nossas comunicações via ‘zap’. Quando passo a mensagem sei que ele só vai
visualizar e responder depois de um tempo bem atemporal perto do que hoje é o
costume da maioria. Daí que assumindo esta distância, quando descemos no
destino, deixou o aparelho no táxi e só foi dar por falta, após a chegada da
primeira rodada de bolinhos de bacalhau. Anunciou a perda na maior calma e
alertou que não adiantaria ligar porque na última lembrança que tinha do
telefone, constava a imagem da bateria já ir-se indo. Estava ali uma pessoa
desapegada desses valores rasos modernos. Eu, por outro lado, fiquei num
desespero só. Quis ligar pra Deus e o mundo. Fui desestimulado pelo meu amigo
que alegou tudo ter senha e que no dia seguinte iria tomar as ações. Estávamos
ali para celebrar nosso encontro e um aparelho celular não iria cortar nosso
barato. Pesquei um bolinho do prato e tentei relaxar. Quando toca o meu
telefone. Que surpresa agradável!
Ao
encontrar o aparelho, o motorista cuidou para dar uma carga. Na certa, rejeitou
umas corridas e se concentrou na devolução ao dono. Buscou as últimas ligações e
me achou lá numa chamada. Postei a localização. Minutos depois ele apareceu com
o aparelho. Oferecemos um agrado, não aceitou. A companhia para a outra rodada
de bolinho e o profissional da direção declinou. Jogou as prendas para o dia do
show do Reiberto. Voltou ao volante levando minha admiração.