sábado, 13 de setembro de 2025

crônica da semana - falando sozinho

 Falando sozinho

Há situações que nos pegam sem jeito. Nos atravessam no repente e nos impõem reações inesperadas.

Como aquela na saída do aeroporto de Belém quando tentei ajudar um camarada de tudo quanto é jeito, atrapalhado. Estava voltando pra casa depois de me despedir de um amigo. No caminho para o ponto de ônibus, o pequeno até aqui de malas passou por mim e pediu que eu o ajudasse. Mas não parou, continuou caminhando apressadamente. Aí veio a minha reação meio sem razão. Saí atrás dele tentando de toda forma dar um auxílio, que se reduziu à operação inócua de andar com a mesma pressa que ele. Até tentei dar um apoio, amparando com as duas mãos, a valise que ele lançara sobre as costas, mas ele ia tão rápido que me delegava apenas a menção, minhas mãos como se rogasse por algo, vagaram abandonadas ao vazio. Até que desisti. Ele, feito uma mula comboieira ladeada de caçuás, se adiantou ligeiro. Eu fiquei pra trás tentando entender aquela situação. Passou, inclusive, da parada do Perpétuo Socorro e sumiu ali pras bandas da rodovia Snap. Não teve resultado aquele arremedo de comunicação. Um pedido de ajuda, vindo de um estranho, muito estranho, que não era dado a ajudas.

Por agora, me vi em outro desafio para administrar minha atenção. Com resultado mais aquele, na comunicação. Trancei, por um tempo, uma prosa elaborada, profunda, rica em informações, com um cidadão. De costas.

Estava na caminhada matinal numa rua da Tijuca, no Rio, que tem uma pedra enorme no meio do caminho. A gente aqui de Belém, ou mesmo dessa região de planície não está acostumado com essas expressões de relevo, daí que faço questão de passar por ali e admirar aquele bloco rijo, pomposo, se elevando no meio do nosso trajeto.

Eis que ouço alguém atrás de mim, em brados fartos, coordenados e insistentes. Como só eu caminhava na calçada, estava era se dirigindo a mim. Caramba, exclamei apreensivo, maldando ser um desses destrambelhados que pelo comum encontramos na rua pedindo golpe, intervenção militar, procurando papo de anistia para conjuradores. Virei o olhar para avaliar a companhia, as menções e intenções. Tinha mesmo o baque do cidadão de bem do zap. Bochechas coradas, salpicadas de barba cerimoniosamente doirada, passadas marciais, traje do tipo despojado-caro. Rapidola volvi ao caminho e mantive uma distância de segurança entre nós. Tinha uma voz potente e que me revelou umas frases organizadas e compreensíveis. E ora, ora. Tá vendo como a gente não pode maldar. Não tinha dolo. Só queria partilhar a mesma admiração pela rocha que se expunha ali na avenida. E, me localizando no adiantado, alterava o tom para me informar que aquela pedra tinha mais de sessenta milhões de anos. Quando captei a mensagem, interagi. Mesmo seguindo meu caminho, virei o rosto e de través, admiti que poderia ser bem mais, a Geologia da região datava para mais distante no tempo mesmo. Emendou pedindo que eu prestasse atenção lá ao longe, ao corcovado e acrescentou ter lido em algum lugar que a pedra do Cristo tem mais de 500 milhões de anos. A seguir, filosofou. “E a gente acha que viveu muito. O homem se considera o dono da Terra. Não é nada diante das maravilhas eternas da natureza”. Taí, aquele senhorzinho com jeito de militar aposentado estava me saindo melhor que a encomenda. Ainda de costas, dei linha reforçando que em termos de ocupação da Terra, o homem perde feio para a samambaia. Lembrei Carl Sagan quando afirma que pela idade da Terra, se comparada a um ano, o homem moderno só apareceria nos últimos minutos do dia 31 de dezembro. Animei com a companhia da caminhada e ainda de costas, para ilustrar a vastidão do tempo, iniciei aquela lenda do passarinho que a cada mil anos vinha afiar o bico numa rocha. Mas antes que eu concluísse a história com a abstração da eternidade, olhei para trás e o homem não estava mais. Foi aí que me peguei falando sozinho.

sábado, 6 de setembro de 2025

crônica da semana

Olhos graúdos

Aquela manhã cedo, bem cedinho mesmo, em frente à DRT da Gaspar Viana, me volta à memória sem que eu tenha que despender muito esforço. Porque, pelo certo, foi de grande impacto. Mamãe me botou da rede ainda no escuro das cinco e poucos. O custo foi nos aviarmos na higiene matinal e corrermos para parada pra pegar o primeiro ônibus. Tínhamos que nos adiantar, as senhas na DRT eram poucas. Eu ia tirar minha primeira carteira profissional, a mesma que levei no ano passado para dar uma baixa simbólica, quando me aposentei, depois de contados 49 anos além do dia em que madrugamos naquela fila.

Não pegamos a senha. Esses serviços, a gente sabe. Por mais que a gente chegue cedo, tem gente que chega mais cedo e quando dá a nossa vez, não tem mais vaga e a gente sobra.

Não podia ficar sem aquela carteira. Era da parte do urgente. Uma oportunidade no supermercado estava me esperando. Tudo certo. Eu até já faturava uma grana de gorjeta, nos finais de semana, trabalhando como encostado, de empacotador, ou como se usava dizer naquele tempo, boy, na loja de confronte ao Baenão. Mamãe não desistiu. Esses serviços, a gente nunca pode dar como perdidos. Sempre tem um jeitinho. Tem sempre um despachante que desenrola o enrolado. Logo apareceu um oferecendo os préstimos, dizendo que a partir de uma módica contribuição, colocaria a gente pra dentro na certa. Mamãe parece que estava adivinhando, levou um dinheirinho pro café e um extra para as precisões. Calhou. O homem pegou o agrado, meus documentos e sumiu lá pra dentro. Demorou. Apesar do cafezinho com pão e manteiga com o tempero de calçada movimentada da Primeiro de Março, quando ele apareceu de novo, já na batida da campa da DRT, eu já estava azul de fome. Pediu que a gente fosse atrás dele. Entramos no prédio com a chancela daquele esperto domador das barreiras burocráticas. Fui direto para a foto. Estava com uma camisa de botão, de gola rija, de tecido barato com estampas discretas. A foto foi em preto e branco. Ajustaram a placa no meu peito com a data da emissão da carteira e dispararam o flash. Não sei se pela urgência de querer ser um rapazinho, sendo uma criança ainda, ou se, ansioso para pegar meu documento para trabalhar logo como contratado, sai foi mais zoiúdo que o graúdo traço genético dos sodreres na foto. Ou era mesmo a fome, pelo adiantado do meio-dia esbugalhando meu olhar.

Tinha 12 anos. Regime militar, sem bolsa nenhuma, sem programas sociais de auxílio aos pobres, sem futuro. Tinha mesmo que lutar pela vida. Dias depois, no ano da graça de 1975, assinava pela primeira vez minha carteira de trabalho.

Agora, pelo início de setembro, completei um ano de aposentado. Pensei que não, mas rola um filme na cabeça. Vem a cena desse começo meio atropelado na fila da DRT em 1975, o jeitinho que o interessado despachante deu para me pôr para dentro do mercado de trabalho e minas outras lembranças. Pipocam aqui, ali no cocuruto fatos, eventos, umas saudades. Ferinas frustrações ressurgem. O arrependimento por não ter cuidado da saúde o tanto que ela merece esses anos todos faz menção de me atormentar, mas dou o desdobro e tento recuperar o tempo perdido. É aquilo, em nome do trabalho a gente larga de mão valores outros como cuidar do corpo, da mente, da família, dos amigos. Vai deixando pra depois. Hoje vivo, com ônus, o depois.

Avalio a decisão de parar como positiva. Na conta, deu tudo pelo certo. Também, né, manos e manas, trampando 49 anos direto, tenho a merecendência do ócio e de fazer da minha cabeça um glacial ambiente de paz, a dita cabeça de gelo.

Fosse tirar uma foto hoje arremedando ser um rapazinho, procuraria uma camisa de botão séria, com golas engomadas. No retrato, por certo, meus olhos brilhariam mais serenos, amiudados e calmos. Descansados. Sem o azul da fome ou a ‘ânsia da vida por si mesma’, urgente e perturbadora, me pinicando a mente.

sábado, 30 de agosto de 2025

crônica da semana - surpresa

 Surpresa

Se eu abrir meu coração no claro e justo, não escapa a minha recatada frustração com o ser humano. De besta que sou. De me achar metidão, exigente, a ponto de formar um padrão de personalidade e correr atrás de perfeições, ainda que ao custo alto da solidão. Mesmo admitindo que não sou o suprassumo da retidão, que não tenho um isso que o periquito roa de santidade e muito pelo contrário. O certo é que ante tantos descaminhos, ainda mais hoje com a indústria do ódio e da desinformação em alta, igual a muita gente, minha luta é diária pelo lado probo da vida.

Ninguém é perfeito. Eu é que fico tareando no espaço as beldades de caráter, quando deveria sim, me conformar e garimpar aqui e ali, boas almas que se salvam, cravadas de defeitos, mas limpinhas, ajeitadinhas, sem dolo ou marcas de maldade. Pessoas legais, que resistem às contaminações diárias, às rasteiras do mundo vil. Se eu me livrar de preciosismos, dos jeitos e modos de ser ideais, vou perceber que do nada, na vulgaridade das horas, emerge do mar agitado desta sociedade impregnada de egoísmo e ganâncias, pessoinhas da mais alta qualidade. Na diversidade dos termos e medidas, e que se assentam em todos os calibres. Do prestativo, ao desapegado. Olha que surpresa agradável aconteceu quando meu amigo deixou o celular dele dentro do táxi. Com o detalhe das reações. Dele e do motorista que encontrou o celular:

No começo, tem a chamada para um carro de aplicativo. Estávamos em folgada tarde a celebrar anos e anos de amizade. A corrida era pra experimentar a porção famosa de bolinhos de bacalhau produzida por um bar que ele conhecia. Ao ter a corrida cancelada e percebendo um táxi nas proximidades, no repente, deu sinal. Entramos no táxi. Ele ainda com o telefone celular na mão. Entendo que dada a inutilidade do aparelho, já que a tarifa viria não mais do aplicativo, mas do taxímetro, meu amigo deve ter se desligado, se distraído. Desviado a atenção para a conversa com o motorista, que estava era boa. Na certa, por estar atento aos casos ao largo, largou o telefone por cima do banco do carona. Eu, no banco de trás, prestava reparo, me surpreendia com a desenvoltura da conversa. Uma agradável viagem, versada em ironias, risíveis passagens e até em combinas para o próximo show do Roberto Carlos. Gente boa, o taxista; meu amigo, muito dado. Fizeram uma boa dupla.

Meu amigo tem uma consideração distante pelo celular. Sei disso por causa das nossas comunicações via ‘zap’. Quando passo a mensagem sei que ele só vai visualizar e responder depois de um tempo bem atemporal perto do que hoje é o costume da maioria. Daí que assumindo esta distância, quando descemos no destino, deixou o aparelho no táxi e só foi dar por falta, após a chegada da primeira rodada de bolinhos de bacalhau. Anunciou a perda na maior calma e alertou que não adiantaria ligar porque na última lembrança que tinha do telefone, constava a imagem da bateria já ir-se indo. Estava ali uma pessoa desapegada desses valores rasos modernos. Eu, por outro lado, fiquei num desespero só. Quis ligar pra Deus e o mundo. Fui desestimulado pelo meu amigo que alegou tudo ter senha e que no dia seguinte iria tomar as ações. Estávamos ali para celebrar nosso encontro e um aparelho celular não iria cortar nosso barato. Pesquei um bolinho do prato e tentei relaxar. Quando toca o meu telefone. Que surpresa agradável!

Ao encontrar o aparelho, o motorista cuidou para dar uma carga. Na certa, rejeitou umas corridas e se concentrou na devolução ao dono. Buscou as últimas ligações e me achou lá numa chamada. Postei a localização. Minutos depois ele apareceu com o aparelho. Oferecemos um agrado, não aceitou. A companhia para a outra rodada de bolinho e o profissional da direção declinou. Jogou as prendas para o dia do show do Reiberto. Voltou ao volante levando minha admiração.

 

sábado, 23 de agosto de 2025

crônica da semana - a sesta e o sexto sentido

 A sesta e o sexto sentido

Depois, depois... Não tenho culpa se os fatos acontecem comigo desse jeitinho, se bandeando para o lado dos impressionantes mistérios. Mas parece uma coisa. Dita, escrita e subscrita pelo destino.

Aconteceu há alguns anos, muitos até, d’eu sonhar com o encarreirado de números certinho no tanto de quebrar a banca do bicheiro. Contei este causo aqui, certa vez. O relevante da história é que foi um sonho que me ocorreu naquele sono da tardinha, aquele depois do almoço, que a gente não dá nada por ele. E também, foi num contexto de precisão. Pra eu estar dormindo a sesta, em casa, era caso de ócio forçado. Barra pesada e imprensada do desemprego. Estava, como se diz no trecho, urrando. Na pira-paz de grana, chorando um olho e remelando outro por um anúncio nas páginas de jornal ou uma indicação da parceirada das lidas, para uma oportunidade de trampo. Não domino a arte do jogo, mas passei os números na ordem que apareceram no sonho, pra mamãe. Ela fez as contas, somou, dividiu, tirou a prova dos nove, a prova real, vai um aqui, empresta outro ali, fecha o parêntese, passa a régua e ela preencheu a pule na extração do corujão. Éraste! Cravou na cabeça. Rolou uma grana firme, que se não fosse a reaplicação no jogo, nos garantiria vida boa, sem travanca, só na manha, por uns três meses, tirando até onda, fazendo extravagâncias, escolhendo a pá só com o osso da peça, no talho do Manduca. Mas tirando um pelo outro, o ter e o haver, foi um tutu rechonchudo que nos valeu que só.

De tal sorte que se maldo para os desdobros, era de colocar uma plaquinha na porta de casa para me ocupar as tardes, antevendo números pra galera. Resisti, mais porque não mais sonhei com piriricas de nada, que por algum pudor guardado no coração (confiava, porém, que pelo sagrado ou pelo profano, numa hora ou outra a premonição me visitaria de novo).

Eu fiquei impressionado com essa história dos números. Deu de desconfiar mesmo que me avio com uns fenômenos aí extra-sensoriais, fora, além dos nossos comuns pendores. Porque não foi só daquela vez que me vi envolvido nessas paradas. Outras, com sonho, sem sonho, às vezes com uns arrepios ou esquentamento de orelhas, sinais silenciosos, sentimentos estranhos; outras vezes, desta ou daquela forma, me ocorreram.

Ou mesmo atuando nas beiradas das coincidências. Como agora, este ano, quando os extremos me acompanham.

Pelo que torna e pelo que deixa, nos tempos atuais tenho me dedicado a periódicas jornadas de vovô em terras cariocas. Na minha missão de início do ano, experimentei um calor espetacular por aqui. Uma aventura de contornos térmicos dramáticos. Temperaturas acima da média. Em alguns pontos da cidade a coluna de mercúrio subiu além dos 47 graus. Agora mire e veja, se não é um chama sobrenatural para os sobressaltos. Desde o início do mês de agosto, cumprindo outra fase de vovozinho, estou vivendo exatamente o contrário. O mês todo é de frio bem doído para os padrões cariocas e uma sequência inteiriçada de dias gelados que não se registrava há pelo menos 20 anos. Diante das vivências extremas, posso considerar que se alguém está querendo uma reviravolta climática, é só me chamar que o tempo desanda. Tenho a liga, o chama. Ensejo as consequências mais atarantadas do aquecimento global. Não que eu queira.

Posso colocar na conta de um sexto sentido, um fluido ativo outro e oportuno, que se manifesta ao acaso e faz acontecer. Me vejo na pretensão de ser um arremedo dos mutantes, aqueles dos filmes com seus poderes sem controle. E nem sei avaliar a minha qualidade de mutante. Se da turma dos bonzinhos ou dos mauzinhos. Por agora, percebo que para forjar as tendências do frio-quente, nem é necessário o expediente da sesta, da premonição, do esquentamento de orelha, dessas esquisitices. Os absurdos mundanos fazem por mim. Nem sonhar sonho mais.

sábado, 16 de agosto de 2025

crônica da semana - ser normal e tal - conexão

 Ser normal e coisa e tal

Da vez que vim de Lima, no Peru, para o Brasil, aconteceu igual. Estava com um parceiro meio desligadão, nem seu Souza para as urgências e contingências. Fui na dele, patetei no horário de pico da cidade, e no trajeto para o aeroporto demos de encontra com um trânsito daqueles, lento, travado. O que se deu é que chegamos ofegantes e na batida da campa para o embarque. Por aqueles dias ainda se marcava lugar no balcão, na ocasião do ‘chequim’. Pedi janela. A atendente me respondeu dizendo que só havia sobrado uma janela, na última fileira, aquela aonde a poltrona não reclina e que fica de palmo em cima com os banheiros. Me dei foi por satisfeito. Estava na conta do nosso atraso essa prenda. Peguei a vaga. Íamos atravessar a cordilheira dos Andes e por causa de uns dramas pequeninos de últimas poltronas eu é que não ia perder o espetáculo grandioso das montanhas. De jeito e maneira.

De modos que já estou passado na casca do alho de viajar me batendo com os desconfortos da última fileira do avião. Por isso não queimei as piriricas quando no aleatório para a viagem mais recente que fiz, fui lançado para a mesma colocação. É certo que reinei numa insatisfação por jogarem os avós e a netinha no fundão, mas um outro e dramático fato daquela viagem de regresso do Peru,  me requereu mais atenção. O curto tempo de conexão.

Agora desta vez o cuidado era com a troca de avião em Brasília quando tínhamos minguados 50 minutos para sair de um e entrar noutro. Com criança, bagagem de mão, um estirão a vencer às carreiras e o demorado desembarque de mais de 200 passageiros.

Sou desses. Espírito cartesiano. Dou maior valor no xis aventureiro lançado ao encontro com um ipsilone, de espera atenta, num cantinho certeiro do espaço. Acredito, em qualquer combinação, na geração de um inequívoco ponto P, objetivo, absoluto e dotado de algum sentimento. Daí que, dias antes da viagem, as noites se tornaram mais curtas, o sono dava lugar a simulações de situações limites, continhas, avaliação de imprevistos, julgamento antecipado de eficiência da infra-estrutura do aeroporto e da companhia aérea. Preocupação latente e insistente com os detalhes da viagem. Agendei documentar, filmar tudo, cada etapa do vôo. Caso perdesse a conexão teria provas suficientes para demandar os operadores do sistema.

Do meio por fim, encaminhei um plano de ação. Mapeei o aeroporto de Brasília, localizei os píeres, possibilidade de desembarque em cada um deles, estratégia de deslocamento. Fez parte do plano de ação também, uma pesquisa sobre o tempo de deslocamento entre os píeres. O destaque é que a quase totalidade dos vídeos que achei na internet é desprovida de funcionalidade. A maioria retrata o lado recreativo das conexões, exibem vulgaridades, registros vazios de finalidade. Nada sobre os aspectos práticos de uma conexão, como a distância dos portões e tempo de caminhada entre eles. Até que achei um perfeito. Um único vídeo útil indicando a duração da caminhada de um píer a outro. Captei a mensagem, 11 minutos. Agreguei a informação às minhas continhas.

Já na hora do embarque aqui em Belém, a dica. Enquanto esperava a chamada, medi o tempo de desembarque de dois aviões que chegaram. No máximo, 15 minutos. Mais uma parcela para calibrar minha soma de tempos.

Meus aperreios, minhas ações, noites de sono perdidas e as continhas, sem hesitar, são tidas aqui na família como sinais de ansiedade, apreensão e preocupações nada normais. Aqui ali, ouvi orientações para eu me aquietar, deixar tudo pela providência divina e levar a vida na boa.

Não desapeguei das minhas manias. Afinal, admito que ser cartesiano. Um articulador cronometrado, para mim é natural. Combinar xises aleatórios e ipsilones comprometidos, entendo que sempre gera um ponto certeiro no espaço, dotado de personalidade. Sou normal eu. E, então, deu tudo pelo certo na conexão. 

 

 

sábado, 9 de agosto de 2025

crônica da semana - no fio da navalha

 No fio da navalha

Tem já um poder de tempo que corto o cabelo somente no manejo basicão da máquina zero. Me avio naqueles salões populares, dou a letra da altura e, num tapa, antes que eu ensaie pronunciar a desafiadora trava-língua ‘pipabaquígrafo’, o trabalho se dá por encerrado. Foi nessa ligeireza toda que dei reparo que não usam mais, pelo menos no caso do estado mínimo do meu cocuruto ultraliberal, a navalha. Como não uso o serviço para outras demandas, desconfio que para o tratamento da barba, sim, ainda se usa a lâmina articulada.

Essas novas técnicas, com máquinas que cortam bem rés, vontades estéticas recentes, além do medo de contaminações, levaram a navalha para um patamar reduzido de utilização. Com ela, também a expressão ‘no fio da navalha’.

Consta que para que a barba ou os arremates no corte de cabelo se realizassem com êxito e no mais apurado refino, tinham que ser feitos ao fio da navalha, ou seja, com o máximo de precisão. No limite, no extremo do acerto. De tão afiada a lâmina, um movimento débil poderia provocar um golpe dolorido no cliente ou escangalhar o desenho do corte.

Este fino entendimento, o adelgaçamento definidor de resultados, a certeza e a perícia que pautam uma decisão, compõem o teor de minhas reflexões cotidianas quando admito que, por ora, vivemos no fio da navalha. Hoje em dia o sobressalto nos impõe zelo na opção ou opinião mais comezinha, coisa qualquer de calçada, de esquina, prosa vã ou sem sal. Qualquer deslize, qualquer falta de cuidado e a confusão se instala.

Recorro ao formigamento na mente, à associação de idéias para justificar porque minha narrativa se dá, na maioria das vezes, no tempo passado. Digo que sou um cronista retratista, memorialista. É um modo de sofrer menos. Remontar o acontecido não dói, e até mesmo se nos lega algum sofrimento, o cronista dá um jeito, recorre a uma anestesia de estilo, a uma figura poética. O que aconteceu já era, já é memória, não pode ser mudado, mas pode ser interpretado, romantizado, recontado em lirismo ou fantasias. Não há um momento tenso, delicado, decisivo ao se contar os causos já idos. Não temos que cuidar com o fio da navalha.

Agora, olhar a história de palmo em cima, daqui pr’ali, no presente e até, de forma ousada e previdente, rebatê-la para o futuro é missão que exige pé ante pé. Nos recomenda cautela, canja de galinha, remédios pra pressão em dia e uma dose altíssima de serenidade, porque senão, olha, a gente pira.

Mamãe já dizia: ‘o dia de amanhã não nos pertence’, acrescento que nem mesmo o dia de hoje. Nossa rotina é definida por humores e devaneios de poderosos investidos de mando e controle. Nos batemos a cada dia com reinvenções do óbvio, do curto e certo. Todo santo dia uma realidade é atacada e covardemente revista, reordenada, alterada no significado. Mesmo os mais consagrados tratados da ciência são vilipendiados. As narrativas circunstantes nos lançam ao ambiente perigoso, melindroso retratado na ferramenta usada pelos profissionais de barba e cabelo. O fio da navalha.

Eu que não me dou sofrer na ficção, porque, para que tal aconteça, me basta o noticiário matinal, me pego é com os tempos acontecidos.

Lá no seringal, eu tinha um padrinho que era barbeiro. Tinha um medo que me pelava dele. Não exatamente dele. Da máquina zero que ele usava. Lá pelos anos sessenta, a máquina era de acionamento mecânico e difícil de pegar um bom fio de corte. Cada passada do coco da gente era um suplício. Meu padrinho não perdia a viagem. Quando na passada a máquina não cortava, ela, a um manejo diferenciado dele, voltava arrancando o cabelo. Dindinho fazia visitas periódicas ao seringal para as sessões de tortura. Assim que o anunciavam, eu ganhava o mato e me escondia. Custava para me pegarem. Mas quando me achavam... fazendo a releitura, mesmo no passado, na época da inocência, acho que vivia no fio, sem fio, da máquina zero.

sábado, 2 de agosto de 2025

crônica da semana - seu legado

 O seu legado

Consta em toda notícia, todo boato, qualquer respingo de informação, opinião ou impressão que a gente dá de encontra por aí, pela cidade da COP 30, que o tal do seu legado tá que tá chegando e que a nós, nos vai valer que só. Sê bem-vindo.

O que trará abrigado nos afortunados bolsos do tempo? Nos envolverá em seu manto de realizações e divulgará cada uma delas num programa noturno do tipo “O bolso do seu legado?”.

Expectativas eletrizantes acompanham os regalos de seu legado. Dizque tem ponte se elevando, estrada rasgando a mata, igarapés maquilados, hotéis forjados, canteiros lantejoulados, serviços e entretenimentos ativados em nome do seu legado. A Belém que queremos bem sairá da COP 30 repaginada, brilhantinada, empoada e no rouge pó, ainda que sob o risco de borrar os traçados da face urbana ao contato, fugaz que seja, com a chuva da tarde.

Legados são registros que nos valem, representam conquistas, uma ou outra experiência de relevo, por vezes, nos passam a dureza dos dias. São heranças de corpo e de alma, de concreto, como as pontes que se elevam ou apenas espólios abarcados pelos sentidos e ações, como o bom caráter ou a má índole.

Em nossa caminhada por esta estrada fluida e veloz que é o tempo, vamos deixando fiozinhos indicativos, ou trançados afirmativos, assentados, acondicionados a uma realidade. Estes são os nossos legados que repassamos para os próximos, para os dignos e interessados.

Que o legado da COP 30 nos seja útil para, essencialmente, nos sensibilizarmos que os caminhos a serem trilhados nos próximos anos podem causar o nosso bem ou o nosso mal. Vai da gente. Sê bem-vindo, seu legado, se for do bem, pode até ficar para um açaí.

Eu por mim, me darei por satisfeito se o seu legado nos livrar das atitudes miúdas, simples, cotidianas, que nos levam a incredulidade quando ocorrem, de tanto que são absurdas, coisas que nos tempos atuais a gente nem malda que ainda aconteçam com elaborada desenvoltura, no meio do nosso povo.

Do jeito que presenciei ao caminhar pela principal avenida da Pedreira. Ali, o próprio desenvolvimento da nossa trajetória já é objeto do seu legado. Calçadas ocupadas, besuntadas de óleos, graxas aqui. Ali, uma atividade semi-industrial de palmo em cima com a gente, sucatas, obstrução do trajeto por carros imensos, humilhação e um sentimento íntimo de impotência. Mas nem é tudo. Deu-se que uma hora dessas, me vi de encontro a um rapazinho, olha só, um jovem, categoria etária aquela de quem a gente espera tanto! Aparentava ser funcionário de um dos estabelecimentos. Saía de dentro da loja com um copo plástico. Estava terminando o cafezinho do intervalo da manhã. Cruzou a minha frente com o copo na mão, tomou o restinho do café, adiantou-se até o meio-fio, e pluft, ali mesmo largou o copo. No meio da rua. Nessa hora, lembrei do meu legado como contador de causos.

Há algum tempo, publiquei uma crônica com este mesmo enredo. Estava num ônibus e o rapaz jogou uma porção de resíduos plásticos pela janela. Na minha reconstituição, forjei uma fala pra ele, explicando a ação: “depois o pessoal da prefeitura venhu e varru”. Fez sucesso essa expressão que criei. A família, os amigos quando se vêem em situações semelhantes, reproduzem o meu legado linguístico. E por certo, meu legado estava, em alguma versão, na cabeça do rapazinho quando deitou o copo plástico ao meio-fio.

Seu legado da COP 30, se nos deixar lá dentro do cocuruto, um quê de sentimento de cidadania, de respeito pelo espaço urbano, se gerar uma menção de fazer o mínimo, reconhecer a necessidade de descartar apropriadamente os resíduos que geramos, bem o mínimo mesmo, como o exemplo de admitir o uso de um recipiente para lixeira... Se refletir, nas maquilagens, uma mensagem de preservação, educação e consciência cidadã. Se nos fizer entender que nós somos o pessoal que ‘venhu e varru’, a mim já me agrada que só.