A Volta Grande
Do
meio pro fim de março, bateu uma inquietação, uma latomia íntima. Uma saudade molhada,
fluida, livre, ganhando rumo além das margens e dos horizontes finitos.
Imbricada a este tempo chuvoso de recolhimento, por certo, porque o inverno
amazônico é palco úmido e fértil de lembranças. Então bati, virei e mexi pelas
plataformas da internet atrás de vídeos que me atendessem a demanda da memória.
A cidade de Altamira foi a razão da minha vexação de momento.
É
comum, aqui na região, fazer a leitura da cidade a partir do rio. Dito e certo,
todas as produções tinham como ante-sala o belo, o incrível, o afetuoso traçado
do rio Xingu. Aproveitei o roteiro. Foi bom rever aquela beira de rio. Procurei
os points que freqüentava há quase 40 anos: Aquele restaurante insular, mimetizado
em um baixão atravessado por estrada em aterro que ia dar na franja do morro do
quartel; planície de vocação oleira, que nos levava discretamente a peixaria que
tinha como orgulho maior, ter servido aos políticos, inclusive presidente,
envolvidos na obra da Transamazônica. Tirando as ideologias dos freqüentadores,
tinha uma cozinha espetacular, variedade de pratos a base de peixes da região
que entontecia a gente.
Voltando
um pouquinho, em frente à cidade, tinha um restaurante japonês. Ambiente
alternativo, comida diferente, e um atendimento marcado pelo zelo oriental. O
tempo este devastador de gentilezas, esmerou-se em me fazer esquecer o nome da
proprietária, gerente, atendente do restaurante, a japonesa. Mas as lembranças
de uma culinária delicada, cheia de sentidos e das reuniões que fazíamos ali eu
e minha patota ficaram em mim. Não era um lugar ao comum do barato, mas pelo
menos uma vez por mês, quando saía o numerário, marcávamos presença lá. Valia a
pena.
Saindo
da linha de margem agregada ao centro, o Xingu nos reservava áreas de lazer,
banho e confraternização. Eu era fichado no Pedral. Vi agora na internet que
ainda há movimento naquela prainha simpática. Folguei às pampas por ali.
Dentro
da cidade, minhas referências são as ruas Pedro Gomes, Luís Né, o bairro do
Premem. Com exceção de um período em que fomos alojados em um motel que que
virou hotel Juruá, na primeira ladeirona da Transamazônica no sentido Belo
Monte, a maioria do tempo trabalhei e morei pelos entornos do centro. No
entanto, me largava também para O bairro da Brasília.
Tentei
achar nos vídeos, outras referências da cidade. O núcleo urbanizado, os
arrabaldes...
Tinha
um chamego com o bairro da Brasília. Minha equipe de campo, quase toda morava
pra lá. Fiz amizades na música, na militância católica e política que tinham casa
pelos arredores da praça da Brasília. Passei muitos fins de semana comendo
peixe assado, entornando uma branquinha com limão, cortando uma gíria caiapó e
intentando paixões, aninhado à peãozada, na Brasíla.
No
aglomerado da cidade, se quisesse me encontrar era só ir ao restaurante do
Carioca. Perto do trabalho, era o local onde fazíamos a refeição diária e
pendurávamos a conta no prego mais alto da parede mais ao fundo do
estabelecimento. Era lá também que nos reuníamos uma turma diversa que
acomodava técnicos, pesquisadores, políticos de diversos matizes e
simpatizantes do bom papo. Levávamos a liberdade de pensamento noite adentro,
sempre cuidando para manter o teatro de operações municiado de apreciados petiscos.
Por indicação, muitos que visitavam ou faziam jornadas ocasionais no projeto em
que eu trabalhava apareciam em nossas confrarias. Especialistas do Goeldi,
comissões estrangeiras, até o Paulo Vanzolini e o sertanista histórico da Funai
José Porfírio Fontenele prestigiaram nossa patota. Às vezes o tempo fechava
quando as divergências se mostravam inconciliáveis. Carioca entrava em campo e
semeava a paz. Não queria rachas incontornáveis. Era um administrador da
calmaria. E facilitava no que podia. Em tempo de inflação batendo 80% ao mês,
nos quitava os fiados sem a indicada correção e em noites mais inspiradas do
nosso grupo, ia-se embora e deixava a chave do bar com a gente.
Muitas
das minhas referências de acolhimento em Altamira não existem mais. Só o Xingu
continua afetuoso, mesmo que desidratado e tendo perdido o domínio sobre a
Volta Grande.