sábado, 5 de abril de 2025

crônica da semana - volta grande xingu

 A Volta Grande

Do meio pro fim de março, bateu uma inquietação, uma latomia íntima. Uma saudade molhada, fluida, livre, ganhando rumo além das margens e dos horizontes finitos. Imbricada a este tempo chuvoso de recolhimento, por certo, porque o inverno amazônico é palco úmido e fértil de lembranças. Então bati, virei e mexi pelas plataformas da internet atrás de vídeos que me atendessem a demanda da memória. A cidade de Altamira foi a razão da minha vexação de momento.

É comum, aqui na região, fazer a leitura da cidade a partir do rio. Dito e certo, todas as produções tinham como ante-sala o belo, o incrível, o afetuoso traçado do rio Xingu. Aproveitei o roteiro. Foi bom rever aquela beira de rio. Procurei os points que freqüentava há quase 40 anos: Aquele restaurante insular, mimetizado em um baixão atravessado por estrada em aterro que ia dar na franja do morro do quartel; planície de vocação oleira, que nos levava discretamente a peixaria que tinha como orgulho maior, ter servido aos políticos, inclusive presidente, envolvidos na obra da Transamazônica. Tirando as ideologias dos freqüentadores, tinha uma cozinha espetacular, variedade de pratos a base de peixes da região que entontecia a gente.

Voltando um pouquinho, em frente à cidade, tinha um restaurante japonês. Ambiente alternativo, comida diferente, e um atendimento marcado pelo zelo oriental. O tempo este devastador de gentilezas, esmerou-se em me fazer esquecer o nome da proprietária, gerente, atendente do restaurante, a japonesa. Mas as lembranças de uma culinária delicada, cheia de sentidos e das reuniões que fazíamos ali eu e minha patota ficaram em mim. Não era um lugar ao comum do barato, mas pelo menos uma vez por mês, quando saía o numerário, marcávamos presença lá. Valia a pena.

Saindo da linha de margem agregada ao centro, o Xingu nos reservava áreas de lazer, banho e confraternização. Eu era fichado no Pedral. Vi agora na internet que ainda há movimento naquela prainha simpática. Folguei às pampas por ali.

Dentro da cidade, minhas referências são as ruas Pedro Gomes, Luís Né, o bairro do Premem. Com exceção de um período em que fomos alojados em um motel que que virou hotel Juruá, na primeira ladeirona da Transamazônica no sentido Belo Monte, a maioria do tempo trabalhei e morei pelos entornos do centro. No entanto, me largava também para O bairro da Brasília.

Tentei achar nos vídeos, outras referências da cidade. O núcleo urbanizado, os arrabaldes...

Tinha um chamego com o bairro da Brasília. Minha equipe de campo, quase toda morava pra lá. Fiz amizades na música, na militância católica e política que tinham casa pelos arredores da praça da Brasília. Passei muitos fins de semana comendo peixe assado, entornando uma branquinha com limão, cortando uma gíria caiapó e intentando paixões, aninhado à peãozada, na Brasíla.

No aglomerado da cidade, se quisesse me encontrar era só ir ao restaurante do Carioca. Perto do trabalho, era o local onde fazíamos a refeição diária e pendurávamos a conta no prego mais alto da parede mais ao fundo do estabelecimento. Era lá também que nos reuníamos uma turma diversa que acomodava técnicos, pesquisadores, políticos de diversos matizes e simpatizantes do bom papo. Levávamos a liberdade de pensamento noite adentro, sempre cuidando para manter o teatro de operações municiado de apreciados petiscos. Por indicação, muitos que visitavam ou faziam jornadas ocasionais no projeto em que eu trabalhava apareciam em nossas confrarias. Especialistas do Goeldi, comissões estrangeiras, até o Paulo Vanzolini e o sertanista histórico da Funai José Porfírio Fontenele prestigiaram nossa patota. Às vezes o tempo fechava quando as divergências se mostravam inconciliáveis. Carioca entrava em campo e semeava a paz. Não queria rachas incontornáveis. Era um administrador da calmaria. E facilitava no que podia. Em tempo de inflação batendo 80% ao mês, nos quitava os fiados sem a indicada correção e em noites mais inspiradas do nosso grupo, ia-se embora e deixava a chave do bar com a gente.

Muitas das minhas referências de acolhimento em Altamira não existem mais. Só o Xingu continua afetuoso, mesmo que desidratado e tendo perdido o domínio sobre a Volta Grande.