sábado, 24 de fevereiro de 2024

crônica da semana - a parada do Pisco

 A parada do Pisco

Era uma projeção antiga. Não uma vontade ou desejo. Diria que uma programação de futuro baseada na rotina dos meus vizinhos de bairro.

Ali de bobeira, pelas esquinas da Pedreira, sempre reparava que naquele tempinho após o trabalho, logo que desembarcavam do ônibus no canto da Estrela, alguns moradores conhecidos na área, se permitiam uma encostadinha no balcão do Pisco. Desciam umas cervejas, na razão de uma pra cada, traçavam as conversas leves de passar a hora e só depois iam pra casa. Era uma batida certa. Toda tarde o mesmo ritual. Prestava atenção, estimava o ânimo deles naquela confraria e admitia para a minha vida futura de batalhador em qualquer ofício, a possibilidade de me entregar àquela rotina. Penso ser salutar as reuniõezinhas do tipo. Um momento de se desapregar das cargas pesadas de um dia de trabalho, oportunidade de sair do mundo da produção sem medida, sempre mais exigida, e ingressar no seio da família, no aconchegante ambiente do lar, ou mesmo entregar-se ao papinho fácil com a parceirada da rua.  A esquina do Pisco era um entreposto, a margem demarcadora de humores, práticas, intenções diversificadas, analisadas e mapeadas a cada dia, a cada resenha realizada naqueles encontros no balcão do bar.

Passados os anos, já na minha vez, vivendo aquele futuro pregado lá atrás, nem por arremedo raso, faço aquela paradinha pra distrair, após o trabalho. Mesmo porque, Pisco mais não há. Minha lida diária, traduzo como tensa, pra não dizer outra coisa. Estressada, cairia na conta também. Na real os meus dias são iguais a tantos outros de tantas pessoas. Modelados em procedimentos, horários, condutas de tal maneira argumentadas e tão severamente pressionadas, que quando saio do trabalho, o que mais quero é chegar em casa, descalçar os sapatos e largar a mente e o corpo no vazio mais vazio que existe do mundo real.

A idéia de uma esticada, um serãozinho de bar, como aquela brotada na mente ali na esquina da Estrela, há tantos anos, ficou sufocada, forçosamente adormecida dentro de mim, por causa das minhas pressas constantes, até a última sexta-feira. Foi quando, naquela correria, passei por um amigo, encostado no balcão de um bar, relutei, mas parei pra tomar um chope com ele e quedar-me a uma óbvia revelação: ele é bem mais feliz que eu.

Nosso encontro foi permeado por cobranças e débeis justificativas. Meu amigo deu bronca. Lamentou a minha retidão porque já o tinha visto outras vezes no mesmo local e nunca havia encostado, só acenava de longe em meio a uma caminhada acelerada. Justifiquei como hábito, a ligeireza pregada pelo torniquete das obrigações. E emendei perguntando como ele consegue tempo para uma parada de lazer sem culpas. Aí ele deitou e rolou. Deu um banho de sabedoria.

Fez um brinde, inclinou a cabeça, fechou os olhos e descreveu aquele fim de tarde. Elogiou a música ambiente, bendisse o vento cortando de banda, ergueu as mãos fazendo as vezes das ondas fagueiras da Guajará. Disse sentir dali, o perfume de mangas caídas às margens desbarrancadas do Piramanha, furo que se embrenha pras bandas da Ilha das Onças e tirou de lá, doces recordações de uma ocasião em que se enamorou de jeitosas sereias azuladas de noite. Abriu os olhos e afirmou ser naquelas tardes de sexta, também depois de uma semana de trabalho duro, a pessoa mais feliz do mundo. Não havia razão para culpas. E desse jeitinho, entregando-se aos bons ares desta península ribeirinha de verde Amazônia. Fez outro brinde e mostrou-me um sorriso sincero. Saúde!

Verdades que me seduziram. Aquelas declarações espontâneas me inspiraram. Profundas como se pautassem um evangelho de cura adaptado aos toques rápidos dos dias.

Deu vontade de recriar uma esquina, Uma rua Estrela, uma parada de ônibus. Um balcão. Um novo Pisco de confronte à baía.

 

sábado, 17 de fevereiro de 2024

crônica da semana - o tempo que o tempo dá

 O tempo que o tempo dá

Eis uma época do ano que me vejo azuruotinho da silva. Não sei que dia é hoje, nem que dia será amanhã ou qual foi ontem. É Carnaval, e até quinta-feira se vive orbitando um limbo libertário, um dia indefinido, nublado, denso de seduções, luxuriante, imerso em perdoáveis pecados, preguiçoso, cobiçoso, cheio de alegria e prazeres abonados pelo sagrado direito ao sonho.

Daí que minha rotina embola toda. Logo eu, heim, taxado que sou de certinho, cronometrado, de movimentos funcionais cartesianos ordenados num eixo xis assim assim de programações.

Parentes, aderentes, família próxima, amigos íntimos, sem maldade chegam a me classificar na categoria dos enjoadinhos. Nada fora da pauta se instala ou altera, sem a mais ferrenha resistência, ou sem uma cara bicuda de descontentamento, os meus planos. Como justifico, sou um cara programável. Se tal coisa me interessa, um evento, um encontro, reunião séria da confraria que seja, ela demanda, no mínimo, uma semana necessária de arranjos e combinas. Daqui pra’li, do dia pra noite, é barra. Difícil pacas de conciliar, de me tirar das habitualidades.

Entretanto, já estive do outro lado do campo. Encarei o jogo sem tática, operando nos atropelos e nas ligeirezas que o tempo exige. Em épocas já remotas, mesmo diante das obrigações se anunciando às beiradas da segunda-feira, não fazia a mínima concessão, não dava limites ao domingo. Tinha a folga do jovem senhor transviado. Descia para os encontros literários na Praça da República, ainda com a cidade se espreguiçando. Com pouco mais, emendava nos batuques entre mangueiras, que se estendiam além do meio-dia e, varando a tarde, compartilhava o tinto imponderável Cantina, com a turminha do Rock ou remanescentes históricos do pedaço, isso quando não desviava rumo e ia dar nas domingueiras do Palácio dos Bares ou nos Pagodes da Anastácia. Não tinha hora de voltar pra casa. Comia pouco ou nada, bebia um tiquinho, uma poeirinha de água; se tinha samba, sambava; fosse carimbó, carimbolava, e a energia se ia apartando de mim, lá pelo adiantado da noite. Dormia tarde e esbagaçado. Na hora do trampo, na segunda, estava só a casqueta. Até tornar, o sofrimento era grande.

O custo foi sacar o tempo que o tempo nos dá. A idade trouxe um adendo de razão, família, as crianças, responsabilidades outras com o trabalho me impuseram freios. Fui me ajeitando. Dosando minhas batidinhas de fim de semana, valorizando a arte solitária de escrever a vida, no aconchego do lar. Não exatamente descartando as seduções mundanas, não, porque elas são nutrientes, compostos vitamínicos, causas e fins de toda a arte. Contudo, me aviei aos cuidados e me ajustei no prumo. Agora, minha lei permite que eu me entregue ao domingo sem eira e beira até duas, ou no muito, três da tarde. Depois disso já é segunda. É termo e tento de desopilar o fígado, arrumar a mochila, os apontamentos, objetos de uso no trabalho, lustrar a bota, desamassar o uniforme e me entregar ao sono reparador cedo, antes mesmo dos gols na TV.

No Brasil não há o feriado de Carnaval. Os dias de folga são deliberações das empresas, instituições públicas que resultam num encarreirado robusto de dias sem trabalho que emenda uma semana n’outra, daí os ariamentos da mente.

No aquietado dos costumes, formatei minha rotina. Esta que se destrambelha no feriadão do carnaval, quando a gente fica desanuviado de nem saber que dia é hoje. Contudo, na manha. Sem sobressaltos ou exageros. Entendendo que uma horinha dessas, a quinta-feira fará as vezes de segunda. O cenário exige prestar reparo e dar atenção ao tempo que o tempo de folia (ou de ócio) nos é possível. Tenho que perceber a hora de desplugar, desopilar o organismo, desamassar a roupa, trocar a percata pela bota. Começar a quinta-feira cedo e terminar cedo porque logo ali tem outro domingo.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

crônica da semana - Sucuri

 Amar e outros medos (parte XXIV)

Tá legal, eu aceito a pilhéria, a encarnação. E não dá nem pra tentar um desdobro, um desvio aos modos de um laço frouxo. Tá amarrado, gravado e nas mídias. Aqui só não tropeçamos em Sucuri, porque ela, por capricho, deu de escalar árvores na área central da cidade. Não dá nem pra dizer que não. A Sucuri rebolando faceira pelos espaços nobres da cidade anda nas cabeças, anda nas bocas.

Antes de emendar na história da cobra que foi resgatada de uma árvore na Padre Eutíquio, coisa de um mês atrás, me deixo revelar um medo. É que me impressiono com as solidões de escadarias. Às primeiras horas da manhã, na saída pro trabalho, tento catalisar meu acendimento para o dia, enfrentando uns lances de escada do meu prédio até dar na rua. São aquelas quebras entre os andares, o desconhecido após cada quina de parede que me impressionam. Meu medo é que numa das dobras, eu dê de encontro com uma Sucuri. Não uma dessas doces que sobem em árvores, mas sim daquelas de cinema, ligeiras que nem sei o tanto e com aquele sadismo expresso em caras, bocas e olhares sedutores. O roteiro é de filme de quinta. Venho bem descendo os degraus, pensando na morte da bezerra, quando nem que maldo, zapt, sou enlaçado. A bicha me encara com ar de pouquista, e cicia sem que faça questão que eu entenda: perdeusssss Ssssssodré, exibindo um palmo de língua bifurcada pra fora, quase pinicando a ponta do meu nariz. Tenho tempo apenas de perceber o escorregar do corpo da serpente em volta do meu, um som difuso de esqueleto quebrando e... apago a aventura do dia. Meu ônibus tá passando e me avio correr pra parada porque se perder esse, já era.

Este medo de um enlace rápido é produto dos conflitos íntimos, não ditos e escondidos no inconsciente guardador de angústias. Não faz parte do meu mundo real. Se bem que meu cantinho é nas margens no canal da Pirajá... que tem a nascente nas matas da aeronáutica... que recebe a enchida da maré... e que pode trazer visitantes para os largos da rua. Penso que convém mesmo dar uma espiadela, antes de dobrar a esquina dos andares. Vai que...

A encarnação é franca. Agora, aqueles engraçadinhos que se fartam de satisfação em polemizar nas redes sociais que aqui no norte a gente se comunica por sinais de fumaça, usa cipó como meio de transporte e topa a cada esquina com cobras e jacarés, têm um fato. Tido, havido, acontecido e diga-se, espetacularmente documentado. Ressalte-se que a pessoa que fez o vídeo teve equilíbrio e tranquilidade para registrar em detalhes, toda sequência de movimentos que a serpente fez da base até a parte mais alta da árvore. Cuidou de roteirizar o serpenteio e nos mostrar a plástica daquela coreografia encantadora.

Agora pode, o semgraçadinho, tirar uma onda, mas não é pra costume. O bombeiro, na caté, resgatou a Sucuri lá do alto. Mostrou que a gente respeita os animais, deixou que ela se assanhasse tomando-lhe boa parte do braço num assimétrico aperto, mas depois a ela, deu o destino que melhor lhe cabe (pode ser que até a tenha reintroduzido no habitat, aqui nas matas da aeronáutica, perto de casa... hum, hum, lá vai eu me impressionar com as escadas de novo).

Sei de muitas histórias envolvendo Sucuris. Traumáticas. Dramáticas. O instinto nos põe em lados opostos na luta pela sobrevivência. E aí, temos que destacar as atitudes da população na hora da aparição do animal em plena via pública. Não julgou. Não apedrejou, não jogou paus ou pragas. Não maldisse, nem corrompeu a lei da natureza.

Amamos Belém. Fantasiamos aventuras ao descer uma escada. Inventamos modas e medos. Assumimos bairrismos asseverados. Mas dessa vez não tem combate. Não dá nem pra dar o desdobro. A bichona anda nas cabeças, anda nas mídias, anda nas bocas. Faceira. Escalando a árvore pleno centro da cidade.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

crônica da semana - bexiga natatória

 A bexiga natatória e o listão

Dou o maior valor nas comemorações pela aprovação no vestibular. Ler o nome no listão é pra se alegrar mesmo e muito. Ainda mais se for aluno da barra, dos arrabaldes, dos longes, difíceis e, não raro, esquecidos estirões. Aqui na baixa da Pedreira, é só ouvir o foguetório, o alô papai, alô mamãe do Pinduca, que já me animo pra saber de que rumo vem a festa. Em nosso cantinho à beira do canal da Pirajá a marchinha do vestibular tocou que só. Teve uma onda boa da família, entrando na UFPA, por uma pá de tempo. Agora, me enxiro nas comemorações alheias, as gerações da família se espaçaram e vamos esperar a próxima leva com a netinha, os sobrinhos-netos. Por ora, vou me emocionando com a animação dos vizinhos e conhecidos dessa Pedreira velha. E me derreto logo. Choro, vibro junto com os calouros, me breo todo com maizena e ovos quebrados na cabeça. Faço reflexões do instante quando me deparo com um garoto da mais genuína perifa ostentando um cartaz com uns dizeres anunciando que ele passou em Direito. Em Direito! É jovem de imenso valor. Brasileirinho que tem dentro dele todas as forças e energias para remexer o que está imóvel e impenetrável. Um lutador rompendo barreiras, derrubando obstáculos, desdizendo crenças e vaticínios exclusivos. Passar em Direito... Emparelhar com tantos sobrenomes tradicionais. É de tirar o chapéu.

Este feito grandioso me faz lembrar que também tentei Direito. E não passei. Na conta que fiz, me faltaram 12 pontos pra alcançar a nota e também, liminarmente, careceu de mais zelo e atenção aos sobrenomes que abicoravam a vaga e que no meu deslize e no cômputo geral, acabaram abiscoitando a chance que tinham de passar. Pra não ficar assim, que não passei porque sou um desmerecendente, não conto conversa e pra desanuviar da dor, jogo a culpa na questão de Física que nos cobrava saber algo e mais um tanto sobre a bexiga natatória dos peixes. E reconheço. Lutei com as armas que eu tinha. A vasta e desregrada palavra.

Acho que foi a primeira versão do vestibular com respostas discursivas, largando pra trás, a loteria dos xises. Estava indo até bem. Uns escorregões em Matemática, outros em Química, mas nas questões das humanidades e línguas, estava arrebentando a boca do balão. Aí veio a prova de Física. Não sabia piriricas de nada. Poderia até gastar meu charme nas questões todas, que se contavam em cinco. Fiz uma continha rápida e estimei que se caprichasse e me dedicasse em apenas uma, faria bonito. Escolhi a da bexiga natatória. Havia um texto-base, a pergunta e abaixo, uma lauda quase toda para a resposta. Pra quê meu Deus! Mandei ver. Usei todas as linhas, escrevi o que devia e o que não devia. Assim como o texto anunciava, fui em cima, fui em baixo, especulei, afirmei, depois reconsiderei. Houve um momento que refiz a pergunta lá do comando. Duvidei dela, da natureza das coisas, de Arquimedes, da Eureka e da eficiência das experimentações em banheiras. Num determinado instante me coloquei na pele da pessoa que iria corrigir aquele devaneio. Aquela mais pura e destrambelhada enrolação. Não sabia absolutamente nada sobre a relação da bexiga do peixinho com a Física Clássica. E o resultado foi um belo zerinho na questão. Na conferência do gabarito, quando esperava uns cents dela, me veio o mais nítido vazio. Meu peixe-curso de Direito afundou de bexiga vazia.

Crianças, não façam isso. Estudem. Respondam todas as questões, façam exercícios. Por falar em exercício, depois do caso passado e me entretendo com os vídeos do celular, encontrei mina de questões resolvidas e comentários sobre o mesmíssimo problema posto da bexiga natatória dos peixes. Tivesse eu me entregado à curiosidade antes e também, à época, uma boa internet, estaria ali, pareando no Direito com os tradicionais sobrenomes hoje.