A parada do Pisco
Era
uma projeção antiga. Não uma vontade ou desejo. Diria que uma programação de
futuro baseada na rotina dos meus vizinhos de bairro.
Ali
de bobeira, pelas esquinas da Pedreira, sempre reparava que naquele tempinho
após o trabalho, logo que desembarcavam do ônibus no canto da Estrela, alguns
moradores conhecidos na área, se permitiam uma encostadinha no balcão do Pisco.
Desciam umas cervejas, na razão de uma pra cada, traçavam as conversas leves de
passar a hora e só depois iam pra casa. Era uma batida certa. Toda tarde o
mesmo ritual. Prestava atenção, estimava o ânimo deles naquela confraria e
admitia para a minha vida futura de batalhador em qualquer ofício, a
possibilidade de me entregar àquela rotina. Penso ser salutar as reuniõezinhas
do tipo. Um momento de se desapregar das cargas pesadas de um dia de trabalho, oportunidade
de sair do mundo da produção sem medida, sempre mais exigida, e ingressar no
seio da família, no aconchegante ambiente do lar, ou mesmo entregar-se ao
papinho fácil com a parceirada da rua. A
esquina do Pisco era um entreposto, a margem demarcadora de humores, práticas,
intenções diversificadas, analisadas e mapeadas a cada dia, a cada resenha
realizada naqueles encontros no balcão do bar.
Passados
os anos, já na minha vez, vivendo aquele futuro pregado lá atrás, nem por
arremedo raso, faço aquela paradinha pra distrair, após o trabalho. Mesmo
porque, Pisco mais não há. Minha lida diária, traduzo como tensa, pra não dizer
outra coisa. Estressada, cairia na conta também. Na real os meus dias são
iguais a tantos outros de tantas pessoas. Modelados em procedimentos, horários,
condutas de tal maneira argumentadas e tão severamente pressionadas, que quando
saio do trabalho, o que mais quero é chegar em casa, descalçar os sapatos e
largar a mente e o corpo no vazio mais vazio que existe do mundo real.
A
idéia de uma esticada, um serãozinho de bar, como aquela brotada na mente ali
na esquina da Estrela, há tantos anos, ficou sufocada, forçosamente adormecida
dentro de mim, por causa das minhas pressas constantes, até a última
sexta-feira. Foi quando, naquela correria, passei por um amigo, encostado no
balcão de um bar, relutei, mas parei pra tomar um chope com ele e quedar-me a
uma óbvia revelação: ele é bem mais feliz que eu.
Nosso
encontro foi permeado por cobranças e débeis justificativas. Meu amigo deu
bronca. Lamentou a minha retidão porque já o tinha visto outras vezes no mesmo
local e nunca havia encostado, só acenava de longe em meio a uma caminhada
acelerada. Justifiquei como hábito, a ligeireza pregada pelo torniquete das
obrigações. E emendei perguntando como ele consegue tempo para uma parada de
lazer sem culpas. Aí ele deitou e rolou. Deu um banho de sabedoria.
Fez
um brinde, inclinou a cabeça, fechou os olhos e descreveu aquele fim de tarde. Elogiou
a música ambiente, bendisse o vento cortando de banda, ergueu as mãos fazendo
as vezes das ondas fagueiras da Guajará. Disse sentir dali, o perfume de mangas
caídas às margens desbarrancadas do Piramanha, furo que se embrenha pras bandas
da Ilha das Onças e tirou de lá, doces recordações de uma ocasião em que se
enamorou de jeitosas sereias azuladas de noite. Abriu os olhos e afirmou ser
naquelas tardes de sexta, também depois de uma semana de trabalho duro, a
pessoa mais feliz do mundo. Não havia razão para culpas. E desse jeitinho,
entregando-se aos bons ares desta península ribeirinha de verde Amazônia. Fez
outro brinde e mostrou-me um sorriso sincero. Saúde!
Verdades
que me seduziram. Aquelas declarações espontâneas me inspiraram. Profundas como
se pautassem um evangelho de cura adaptado aos toques rápidos dos dias.
Deu
vontade de recriar uma esquina, Uma rua Estrela, uma parada de ônibus. Um balcão.
Um novo Pisco de confronte à baía.